segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Filosofar desde o "primeiro sopro"


 

O filosofar desde o “primeiro sopro”

Denilson Aparecido Rossi

No presente artigo pretendemos apresentar, em forma de diálogo, uma reflexão sobre a filosofia desde o início da vida com a possibilidade intrínseca do SER humano.
A conversa ocorre entre dois personagens, “philos” e “sophia”. Inicialmente, o intento desses personagens, é dialogar em torno de algumas considerações gerais sobre a filosofia e o “primeiro sopro”. Depois, enfocaremos a questão antes da concepção, durante a gestação e após o nascimento do bebê e o pensar filosoficamente.

1. Considerações Gerais sobre a Filosofia e o Bebê
Philos – Bom dia Sabedoria!
Sophia – Bom dia Amigo!
Philos – Muito se escuta dizer que filosofia é coisa inútil, é coisa de louco. Diz-se ainda que a filosofia “é a ciência com a qual, ou sem a qual, o mundo continua tal qual”. Do outro lado se escuta dizer também que filosofia é algo muito polido, de difícil acesso e que somente algumas mentes demasiadamente superiores podem praticar. Você concorda com isso Sophia?
Sophia – Evidentemente que não. A filosofia é sempre mais do que se pode dizer e/ou imaginar. Filosofia é uma palavra de origem grega: philosophia. Philos, em grego, significa amigo e Sophia, significa sabedoria.
Philos – Ah! Sê entendi bem, filosofia significa então, amigo da sabedoria?
Sophia – Isso mesmo! A filosofia se ocupa com o saber, com o conhecimento. O filósofo busca sempre saber mais... conhecer mais...
Philos – Como fazer para saber e/ou conhecer mais?
Sophia – Para tanto, a filosofia possui uma ferramenta, um método próprio. Trata-se de trilhar os caminhos da razão. A filosofia é a arte do pensar, indagar, querer saber o “por quê” das coisas. Filosofar é, portanto, buscar conhecer mais do que uma determinada coisa e/ou situação aparenta ser. Trata-se de buscar compreender de forma consciente e crítica as razões de ser e de viver no mundo. Longe de ser algo estéril ou inacessível a filosofia é o instrumento que nos possibilita a compreensão do sentido das coisas. A filosofia está diretamente relacionada ao cotidiano das pessoas. Sobre isso, Luckesi e Passos acrescentam dizendo que “a filosofia tem por objeto de reflexão os sentidos, os significados e os valores que dimensionam e norteiam a vida e prática histórica humana”1. Pode-se dizer, portanto, que viver sem filosofar é vegetar, é não-viver.


O homem em busca de sentido.
Pensar, indagar, buscar conhecer,
A própria razão de ser,
O que significa viver.
Isso é filosofia.
É sabedoria.
Os anos passam ligeiro.
Os fatos se sucedem.

O tempo inteiro,
Muitas coisas acontecem.
Mas, qual o sentido de ser?
Dos anos, dos fatos, do tempo, das coisas?
Perguntar o por quê?
Isso é filosofia,
É saber.






Philos – Se a filosofia está diretamente relacionada ao cotidiano das pessoas significa que ela também tem algo a ver com o bebê?
Sophia – Perfeitamente! O bebê é mais que um novo fato na história da humanidade. O bebê constitui-se num novo ser que interpela por si mesmo uma razão de viver. Portanto, a idéia e o surgimento de cada bebê é uma nova possibilidade para se filosofar, isto é, um sentido para a vida buscar. O bebê traz consigo muitas interrogações. Muitas são as perguntas que surgem antes da concepção. Outras tantas que emergem durante a gravidez. Outras mais que são suscitadas depois do nascimento. Indubitavelmente são inumeráveis as indagações... o que, de certo modo, demonstra existir uma relação direta da filosofia com o bebê.


2. A Filosofia e o Bebê antes da Concepção
Philos – Olá Sabedoria! Gostaria que soubesses o quão significativo me tem sido nosso diálogo.
Sophia – Que bom saber Amigo! Saibas que estou sempre aberta a dialogar. Muito me agrada o diálogo, pois, ele é a possibilidade de expressar o já compreendido bem como buscar compreender o que ainda se pode expressar.

Diálogo.
A arte de compreender
O que muito se deseja saber.
Aproxima o conhecimento distante
Possibilita visualizar um novo horizonte.
O estranho passa a ser conhecido
O obscuro torna-se esclarecido.
Essencial é dialogar,
Todo dia.
Isso é filosofar,
É sabedoria.
Philos – Mas, de fato, o que a filosofia tem mesmo a ver com o bebê antes da concepção?
Sophia – Pois bem, se compreendemos a filosofia como o exercício do pensar, a prática dos por quês e a busca do sentido, facilmente entenderemos que ela tem tudo a ver com a questão do bebê antes da concepção. Antes que um bebê seja concebido é possível que muitas perguntas sejam elaboradas, dependendo do contexto em que se dará a concepção.
Philos – Como assim, dependendo do contexto? E, quais são as perguntas mais comuns?
Sophia – Veja bem Amigo! São vários os contextos que precedem uma concepção: um contexto seria a situação de um casal, casados, que muito se amam e muito desejam ter um filho e planejam concebê-lo; outro seria a situação de um casal, ainda não casados, mas que muito se amam e desejam ter um filho; outro contexto pode ser o caso de uma mulher que deseja ser mãe e pensa em conceber um filho de modo independente; outro seria o caso do homem que deseja ser pai, mas que não pretende se casar; outro ainda seria o contexto de pessoas que desejam conceber filhos gêmeos; um contexto muito peculiar também seria no caso de um dos cônjuges possuir determinada doença, no entanto, desejarem ter filhos; e, assim por diante...
É notório que cada contexto suscite indagações próprias. Imaginemos, por exemplo, o contexto em que o casal, casados, que muito se amam e muito desejam ter um filho, planejam concebê-lo. Seria natural, neste caso, como conseqüência do pensar (filosofar), fazerem-se perguntas tais como: Será que já é o momento certo de termos um filho? Como será esse filho? Queremos homem ou mulher? Pretendemos que seja, ou não, gêmeos? Quando vai nascer? O que queremos com esse filho? E, outras tantas mais...
Pensemos em um outro contexto: uma mulher que deseja ter um filho de modo independente. Neste caso, ela poderia se perguntar: Será que tenho o direito de conceber um filho de modo independente? Ou, por que eu não posso gerar um filho, sozinha? Será que essa criança vai se desenvolver bem sem a presença do pai? Qual o melhor caminho para conceber um filho de modo independente? Vou procurar um banco de espermas e fazer uma inseminação? Vou procurar um homem que se disponha a colaborar comigo? Será que, depois, o pai não vai me tirar o filho? ...
Dentre essas, outras perguntas se poderia fazer de acordo com cada contexto. Independente da situação é importante ressaltar que, paradoxalmente, as indagações criam conflito e, ao mesmo tempo, abrem caminhos, descortinam novos horizontes. O que, portanto, constitui-se num processo filosófico. Razão pela qual podemos dizer que antes mesmo da concepção o bebê já nos faz filosofar.

3. A Filosofia e o Bebê durante a Gestação
Philos – Prezada Sabedoria! Pode a filosofia interferir na vida de um bebê durante a gestação?
Sophia – E como pode Amigo! Mas antes de analisar a interferência da filosofia na vida do bebê, faz-se necessário compreender como pressuposto o que se entende por ser humano, considerando que o bebê já é, em potência e ato, um ser humano. Para tanto, podemos utilizar o conceito cunhado pelo filósofo brasileiro Henrique L. Vaz, para quem “o ser humano é constituído por estruturas (corpo, psique, espírito) e por relações (mundo, outro, absoluto)”.
Philos – Por primeiro, falas-me então da relação da filosofia e o bebê a partir da estrutura (corpo, psique, espírito) do ser humano.
Sophia – Pois bem! É natural que os pais, assim que recebam a notícia de que estão grávidos se ponham imediatamente a filosofar, isto é, a pensar e a fazerem-se muitas perguntas, tais como: Será que o coração dele já está batendo? Como pode desenvolver-se o corpo de um bebê dentro do útero da mãe? Que tamanho já tem nosso bebê? Será que seu corpo já está todo definido e é perfeito? Que cuidados precisamos ter na alimentação para não prejudicar a sua formação? Fumar e ingerir bebidas alcoólicas, que tipos de males causam no bebê?
O que se sabe é que até o terceiro mês, principalmente, qualquer coisa pode ser fatal para o bebê. E que durante toda a gestação o bebê é nutrido pela mãe. Portanto, o desenvolvimento do feto, em termos de corpo, depende diretamente do que e de como a mãe se nutre. São inúmeras as questões que se prestam em torno do desenvolvimento do corpo do ser humano ainda no ventre materno.
Em se tratando da psique não é diferente. Desde a concepção até o nascimento trata-se de um longo percurso no qual a mãe experimenta diferentes situações emocionais.
Faz-se necessário interrogar-se: nesse período, tudo o que se passa na psique da mãe não pode ser absorvido pelo filho? Quando a mãe está feliz será que o bebê também se sente feliz? Quando a mãe está triste o bebê se sente triste? Quando a mãe sente raiva, medo, insegurança, angústia, dor e outros tantos sentimentos de desconforto o bebê também os sente?
Por outro lado, quando a mãe sente paz, coragem, segurança, harmonia e outros sentimentos de conforto, o bebê também os sente? Os sentimentos ou estado emocional do pai também influenciam no bebê? Se o pai ou a mãe rejeitar o bebê que tipo de influência psicológica isso exercerá no filho? A questão da projeção de desejo com relação ao sexo pode interferir na psique do bebê? Se os pais desejarem muito uma menina e vir um menino, ou o contrário, como ficará a psique dessa criatura? Até aonde atinge a psique do bebê o que se passa na psique dos pais?
No que se refere ao espírito é considerável perguntar quando é mesmo que começa a vida? Qual é o momento e como o espírito da vida é insuflado no ser humano? De onde provém esse espírito? Que força de espírito tem o bebê já no ventre materno? Durante o período gestacional pode evoluir o espírito do ser humano?

Perguntar,
É desejo de saber,
É buscar conhecer,
É filosofar.

Philos – Muito bem Sabedoria! Mas, como fora me dito antes, além da dimensão estrutural o humano se caracteriza também como um ser de relações (mundo, outro, absoluto). Podes-me dizer mais sobre isso?
Sophia – Sim Amigo! Antes, porém, quero ressaltar que seu nobre desejo de muito saber e buscar conhecer é a razão pela qual me faz responder. De fato, o ser humano é um ser de múltiplas relações. Relações estas que se dão com o outro, com o cosmo, com o absoluto e, seguramente, consigo mesmo.
Pensando no bebê, durante a gestação, vale interrogar: as relações que os pais exercem com consigo mesmo, com o outro, com o mundo e com o absoluto até que ponto influencia o filho? Tudo o que a gestante escuta, vê e imagina pode ser escutado, visualizado e imaginado pelo bebê? Os pais podem ensinar o bebê a se relacionar com as pessoas, com o mundo e com o absoluto de modo respeitoso e amoroso, mesmo o filho ainda estando no ventre? E assim por diante...

Ser de relação
O homem é sem igual.
Relacionar-se é sua condição
De ser como tal.

Além das questões acima abordadas com relação à filosofia e o bebê, durante a gestação, nota-se ainda a necessidade de considerar outras mais: quando o nosso filho vai nascer? Será que os resultados e previsões constatados nos exames de ecografia (ou ultra-som) são verdadeiros? Até que ponto os exames não falham? Como ele vai nascer? Nosso bebê vai nascer de parto natural ou será preciso fazer cesariana? Vai se parecer com o pai ou com a mãe, ou ainda, com os dois? Qual será a cor dos seus olhos? Vai nascer com saúde? Mais... ???
A cada pergunta um tempo desprendido para se pensar, com isto, percebe-se, portanto, que há um exercício constante: o filosofar.

Filosofia e bebê
Antes de nascer.
Tudo a ver.

4. A Filosofia e o Bebê após o nascimento
Sophia – Prezado Amigo! Com o nascimento do bebê dá-se o encontro com um novo ser humano e, conseqüentemente, com muitas respostas para as inúmeras perguntas até então elaboradas em torno desse ser. Sobretudo, em torno do corpo, muitas respostas são encontradas. Agora, já se sabe se o corpo é perfeito, com quem se parece, se é homem ou mulher, o tamanho, e outras mais... Todavia, surgem outras perguntas de acordo com cada situação.
Philos – Como assim, outras perguntas? Por quê, de acordo com cada situação?
Sophia – Isso mesmo! Uma é a situação na qual o bebê nasce perfeito. Outra quando o bebê nasce com alguma necessidade especial. Outra ainda quando nascem gêmeos, trigêmeos... E, podem ocorrer outras situações...
Philos – No caso do bebê nascer perfeito, por quê fazer perguntas?
Sophia – Porque viver é filosofar. A vida por si só se encarrega de novas questões apresentar.

O tempo passou ligeiro
O bebê acaba de nascer.
Por primeiro,
O que fazer?

Como esta há outras questões a serem elaboradas: pode um ser humano ser perfeito? O que se entende por perfeito? Ser perfeito significa ter todos os membros e órgãos?
Ah! O bebê está chorando, por quê? Está com fome? Está com dor? O que fazer? O leite materno será suficiente para o bebê nutrir-se saudavelmente? Será preciso medicá-lo? É necessário estabelecer rotina (horário de mamar, de banho, de dormir, etc.) ou é cedo para preocupar-se com isso? Onde encontrar respostas para estas e outras tantas perguntas relacionadas às necessidades básicas? Será que os pais têm as respostas? Será que as respostas estão com o filho? Ou ainda, as respostas podem estar na relação entre os pais e o bebê?
No que tange à afetividade e sociabilidade é conveniente interrogar-se também: o que é importante fazer para que o bebê seja uma pessoa integrada afetivamente? O que fazer para que ele se desenvolva e seja sociável? O modo como os pais lidam com seus sentimentos e emoções, até que ponto interfere na afetividade do filho? O comportamento dos adultos influencia muito no processo de socialização deste novo ser humano? Como fazer o melhor para que o bebê cresça feliz e seja amável? Como será o futuro do bebê?
Philos – Estimada Sabedoria! Considerando o que me fora dito acima tenho a impressão que em torno do bebê, além das interrogações apresentadas, existe uma infinidade de outros questionamentos. Isso procede?
Sophia – Indubitavelmente, sua impressão procede caro Amigo! Como vimos, muitas são as perguntas que se prestam em torno do bebê, seja antes da concepção, durante a gestação, bem como depois do nascimento. Disto decorre nossa compreensão de que o bebê nos faz filosofar necessariamente. As interrogações são importantes para descortinar novos horizontes. A bem da verdade há que se dizer ainda que a profundidade das indagações é proporcional à importância que se dá ao bebê.

O bebê.
Quem ele é?
Um novo ser?
O que a filosofia,
Com ele tem a ver?

Vale a pena pensar
Com ousadia.
Isso é filosofar,
É sabedoria.
Denilson Aparecido Rossi
1 LUCKESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete Silva. Introdução à Filosofia: aprendendo a pensar. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 87.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A Filosofia como Procura da Verdade


A FILOSOFIA COMO PROCURA DA VERDADE




“Em seu pequeno e brilhante livro Introdução à Filosofia, Jaspers insiste na idéia de que a essência da Filosofia é a procura do saber e não a sua posse. Todavia, ela ‘se trai a si mesma quando degenera em dogmatismo, isto é, num saber posto em fórmula, definitivo, completo. Fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas, e cada resposta transforma-se numa nova pergunta’. Há, então, na pesquisa filosófica uma humildade autêntica que se opõe ao orgulhoso dogmatismo do fanático; o fanático está certo de possuir a verdade. Assim sendo, ele não tem mais necessidade de pesquisar e sucumbe à tentação de impor sua verdade a outrem. Acreditando estar com a verdade, ele não tem mais o cuidado de se tornar verdadeiro; a verdade é seu bem, sua propriedade, enquanto para o filósofo é um exigência. No caso do fanático, a busca da verdade degradou-se na ilusão da posse de uma certeza. Ele se acredita o proprietário da certeza, ao passo que o filósofo esforça-se por ser peregrino da verdade. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está diante de nós. Assim, a consciência filosófica não é uma consciência feliz, satisfeita com a posse de um saber absoluto, nem uma consciência infeliz, presa das torturas de um ceticismo irremediável. Ela é uma consciência inquieta, insatisfeita com o que possui, mas à procura de uma verdade para a qual se sente talhada.”
                                         
(Huisman, Denis e Vergez, A. A ação. 2 ed. São Paulo, Freitas bastos)


Responda:
  1. Por que o filósofo é chamado “peregrino da verdade”?
  2. Em que consiste uma consciência em constante tensão?
  3. Em que sentido um professor fanático ou pessoa fanática é um desastre educacional?
  4. Por que o processo de democratização de um povo depende de cultura filosófica?

A Morte de Sócrates



A morte de Sócrates

De acordo com Platão, as acusações contra Sócrates foram:
“Sócrates é réu por empenhar-se com excesso de zelo, de maneira supérflua e indiscreta, na investigação de coisas sob a terra e nos céus, fortalecendo o argumento mais fraco e ensinando essas mesmas coisas a outros”1.
“Sócrates é réu porque corrompe a juventude e descrê dos deuses do Estado, crendo em outras
divindades novas”2.
Levado a julgamento, foi condenado à morte. Como e por que isso ocorreu?
Tudo começou quando Sócrates tomou conhecimento de que o oráculo do templo de Delfos, dedicado ao deus Apolo, havia proclamado que ele era o homem mais sábio de Atenas. Não se considerando como tal, mas, ao mesmo tempo, não podendo duvidar da palavra do deus, decidiu investigar o significado de tal revelação.
Procurou, então, aqueles cidadãos mais ilustres de Atenas e que eram tidos como os mais sábios da cidade. Eles pertenciam a três categorias sociais: os políticos, os poetas (autores de tragédias, como Aristófanes, e de ditirambos – cantos religiosos em homenagem ao deus Dioniso) e os artesãos.
Interrogando esses cidadãos (por meio de seu método dialético), constatou que, na realidade, nada sabiam dos assuntos em que eram tidos como sábios. Ao término da conversa com cada uma dessas pessoas Sócrates concluía:
“Sou mais sábio do que esse homem; nenhum de nós dois realmente conhece algo de admirável e bom, entretanto ele julga que conhece algo quando não conhece, enquanto eu, como nada conheço, não julgo tampouco que conheço. Portanto, é provável, de algum modo, que nessa modesta medida seja eu mais sábio do que esse indivíduo – no fato de não julgar que conheço o que não conheço”3.
Daí a famosa expressão atribuída a Sócrates: “sei que nada sei”.
Acontece que Sócrates praticava esses diálogos em praça pública, à vista de todos. Dentre os presentes havia sempre muitos jovens, filhos de famílias ricas, que dispunham de tempo livre (já que não precisavam trabalhar) e, por isso, podiam acompanhá-lo nessas ocasiões. Eles se divertiam vendo Sócrates “desbancar” os que se julgavam sábios e, mais tarde, punham-se a imitá-lo, interrogando outras pessoas e descobrindo muitas que supunham saber o que de fato não sabiam. Essas pessoas, que em geral eram gente importante e de prestígio na cidade, sentindo-se constrangidas, tornavam-se furiosas não contra esses jovens, mas contra aquele que consideravam responsável por tê-los ensinado tal comportamento, e passavam a propagar que: “Sócrates é o mais pestilento dos indivíduos e está corrompendo a juventude”.
Na verdade, quando indagadas, tais pessoas não conseguiam provar tal acusação. Mas para esconder seu constrangimento, lançavam mão daquelas acusações que sempre são usadas contra todo “filósofo, ou seja, que [ensina] ‘as coisas no ar e as coisas sob a terra’ e ‘não crê nos deuses’, e ‘torna mais forte o argumento mais fraco’”4. Esta é a origem das “inimizades, a um tempo implacáveis e aflitivas”, do ódio, das “calúnias” e das acusações contra Sócrates5 e que acabaram por levá-lo à morte.
No fundo, Sócrates foi condenado porque, na democracia ateniense, os assuntos mais importantes da vida da cidade eram decididos em assembléias (Ekklesía) nas quais cada cidadão podia expressar livremente sua opinião em favor ou contra uma determinada posição. Era, pois, um regime político sustentado pela crença no valor das opiniões. Ora, o que Sócrates fazia com sua dialética era justamente pôr em cheque as opiniões, mostrando que, muitas vezes, elas refletiam um conhecimento falso sobre
o assunto em questão. Assim, para as pessoas importantes da cidade que costumavam discursar nessas assembléias, a “má” influência de Sócrates, sobretudo sobre os jovens, representava uma ameaça ao sistema democrático do qual se beneficiavam. Eis aí a natureza política da condenação de Sócrates.

1 PlATÃO. Apologia de Sócrates. Diálogos socráticos III. Tradução Edson Bini. São Paulo/Bauru: Edipro, 2008. p. 139 [19 b-c].

2 Ibidem. p. 146 [24 c].
3 Ibidem. p. 142-143 [21 d].
4 Ibidem. p. 145 [23 d].
5 Ibidem. p. 144 [ 23 a].



Górgias

  Górgias

 
 BD10267_ A vida e as obras

      Górgias nasceu na Sicília, em Leontinos, entre 485 e 480 a.C.. Em 427 a.C., quando Leontinos foi ameaçada por Siracusa, foi encarregado de conduzir a
Atenas uma missão a pedir socorro. Górgias, defende a causa da sua pátria perante a Assembleia do Povo, em Atenas, onde alcança um grande sucesso pela sua eloquência.
      O seu estilo é tão pessoal que os gregos criarão o termo "gorgianizar" para designar "falar à maneira de Górgias". Com o seu estilo, Górgias conquista para o seu ensino vários atenienses de alta estirpe e percorre toda a Grécia sem se fixar. Na Tessália ensinou Isócrates, que veio a fundar em Atenas uma escola rival da Academia. Parece ter ficado celibatário e ter passado o fim da sua vida na Tessália, onde morre mais que centenário.
a
isocrates
      A sua audiência e celebridade era tão grande na Grécia que lhe ergueram uma estátua de ouro maciço em Olímpia. Foi, sem dúvida, devido à sua imensa fama que os fragmentos existentes de Górgias são os mais numerosos e completos de todos os sofistas. Existem até certas obras em extenso, como é o caso d' "O Elogio de Helena" e d' "A Defesa de Palamedes".

      As obras de Górgias podem distribuir-se em três grandes grupos. O primeiro compreende os textos de tom essencialmente filosófico, como é o caso de "Sobre o Não-Ser ou Sobre a Natureza", "O Elogio de Helena" e "A Defesa de Palamedes". Os textos do segundo grupo testemunham sobretudo a preocupação pela eloquência e dele constam: "A Oração Fúnebre", "O Discurso Olímpico", "O Elogio dos Elisinos" e "O Elogio de Aquiles". O terceiro grupo de escritos está relacionado com a técnica retórica e compreende "A Arte Oratória" e "O Onosmástico".


 BD10267_ A autodestruição da ontologia

      O Tratado do Não-Ser organiza-se em três teses: nada existe; mesmo se o ser existisse, então seria incognoscível; e se fosse cognoscível, então este conhecimento do ser seria incomunicável a outrem.
      Para Górgias as coisas não são mais do que não são. Ainda que o ser existisse, não podia ser nem gerado, nem não gerado. Mas, mesmo se um tal ser existisse, as coisas seriam incognoscíveis, pelo menos para nós. As coisas que vemos e ouvimos existem porque são representadas. Ora, pode representar-se o que não existe. Portanto, a representação do ser não nos proporciona o ser e o conhecimento é impossível.
Contudo, tomamos conhecimento pela percepção e comunicamo-lo pela linguagem. Mas a linguagem não transmite a experiência pela qual o real se nos dá. Este é incomunicável, porque as coisas não são discursos.


 BD10267_ A poesia da ilusão

      Das ruínas da ontologia, Górgias deduziu um pensamento não ontológico ou antimetafísico, onde reabilitava as aparências e afirmava a identidade entre o real e a manifestação.
Se a aparência é modificável, o ser também o será. Isto nada tem de escandaloso já que, a realidade é contraditória e o princípio de identidade origina apenas uma ontologia que se contradiz a si própria. De facto, Górgias tinha uma concepção trágica da realidade. Ele tinha o sentimento profundo de que a linguagem não evoca senão a aparência, mas que esta aparência é legítima, do que é exemplo "O Elogio de Helena".

      Para Górgias, o real está dilacerado pelas contradições, o mundo humano exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer. Seria através da poesia, nomeadamente da arte, que esta tomada de posição seria efectuada. Portanto, o papel da poesia seria criar a ilusão, mas uma ilusão desejável e boa. Só esta criaria a coerência mental a que Górgias chama justiça e sabedoria.

      A arte do sofista, isto é, do homem sábio, era, segundo Górgias, uma "ilusão justificada". O discurso sofístico, ainda que expresso em prosa, faria parte da poesia e a ilusão justificada seria tanto mais justificada quanto mais partilhada fosse pelos ouvintes.
      A ilusão justificada é, principalmente, fruto da linguagem poética, que age no ouvinte de modo a sugestioná-lo. O problema central dos poderes da linguagem vai desembocar no estudo da receptividade da alma para a musicalidade das palavras. A este estudo os antigos chamaram-lhe "psicagogia", arte de levar a alma, pela persuasão, até onde se quiser levar.


 BD10267_ A psicagogia

       Para Górgias, a alma é essencialmente passiva, completamente entregue ao que recebe de fora. A primeira forma desta passividade é a percepção sensível, que é vista como o transporte para a alma de uma impressão ou de uma imagem das coisas que a alma experimenta. A segunda forma de passividade da alma é a sua abertura à linguagem. Contudo, para que a alma seja sempre receptiva à linguagem é, por vezes, necessário recorrer à persuasão.

      O discurso isolado nada pode sem o esforço da persuasão, que age não só sobre os sentidos mas também sobre a alma. Persuadir consiste em criar uma recepção psíquica dos ouvintes aos argumentos, dando-lhes peso.       Segundo Górgias, a natureza profunda desta persuasão é poética, é a palavra ritmada. Atento a isto, Górgias inventou figuras de estilo que marcam o ritmo. Lembre-se que Górgias é originário da Grande Grécia e sofreu, precisamente, influência pitagórica, seita esta que estudou os efeitos da música. O próprio vocabulário usado para significar a acção da palavra persuasiva remete-nos para as práticas da magia.
      A persuasão do discurso age por feitiço. O sofista é o feiticeiro. Também o discurso de Górgias age como magia, uma vez que este se serve nele da linguagem.


 BD10267_ O tempo como momento oportuno

      O pensamento de que o tempo não é um meio homogéneo e indiferente, mas que apresenta ocasiões favoráveis para a acção que vem a propósito, é um sentimento que já estava presente no helenismo antes de Górgias. Contudo, é este o primeiro a escrever sobre o kairós. Górgias concebia um tempo essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se deixam perspectivar.

      A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao sofrimento, privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição unilateral. A escolha por um dos contrários não é arbitrária e gratuita, exige sabedoria e sentido de justiça. Foi o primeiro pensador de uma temporalidade prática e estava preparado para formar os homens políticos, os futuros governantes, uma vez que a política é uma ciência sem princípios definidos. O kairós tem, sem dúvida, valor político na medida em que é retórico e a retórica é na democracia ateniense um instrumento de poder. O kairós também intervém na formação dos chefes militares, mas é na vida ética que o seu conhecimento é essencial.

      O ideal da arte do kairós é tornar a vida moral praticável. Mas o kairós não significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ele decide da natureza do tempo e concebe-o. O que exclui a valorização da duração, do longo prazo, da eternidade, conceitos combatidos por Górgias. A coerência das concepções de Górgias não permitem pensar que este se tivesse simplesmente entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o seu talento oratório. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo, Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus sucessores uma profunda influência.




Hípias

Hípias

 
 BD10267_ A vida e as obras

      Hípias nasceu em Élis, cidade próxima de
Olímpia, numa data certamente posterior a 433 a.C.. O ano de 343 a.C. terá sido o da sua morte, relacionada com a guerra que os exilados democratas elisinos fizeram aos oligarcas que detinham o poder de Elis. Iniciou-se nos ofícios manuais, nomeadamente com trabalhos de tecelão e de sapateiro.

      Hípias tinha uma actividade dupla de homem político e de mestre. O seu talento oratório e a sua destreza levaram-no a ser escolhido como embaixador da sua cidade natal. Percorreu toda a Grécia e suas colónias e visitou os ditos povos bárbaros, cuja língua parece ter aprendido. Foi casado com uma mulher chamada Platané e teve três filhos.

      Pouca coisa restou dos numerosos escritos de Hípias. Contudo, as suas obras podem dividir-se em três categorias: os discursos de circunstância, as obras eruditas, e as obras poéticas. Entre as
epideixeis, sabemos da existência do "Diálogo Troiano". Entre as obras eruditas conhece-se os "Nomes dos Povos", a "Lista dos Vencedores nos Jogos Olímpicos" e a "Colecção". Finalmente, entre outros escritos poéticos encontra-se as "Elegias". Existem outras obras que lhe são atribuídas, entre as quais o "Anónimo de Jâmblico", que já faz parte da colecção dos textos sofísticos.


 BD10267_ Natureza e totalidade

      Os sofistas em geral apoiaram-se muitas vezes nos antigos fisiólogos, nomeadamente Hípias, exaltando a natureza face ao nomos.
      Hípias concebia a natureza como uma totalidade, considerando-a composta de coisas distintas, mas exigindo uma atenção especial à continuidade que as une. Portanto, a totalidade natural não é uma totalidade monolítica, pelo contrário, o universo é composto por seres múltiplos particularizados e qualificados a que chama coisas. Estas coisas existem independentemente do conhecimento que o homem delas adquire e da expressão linguística que lhes dá. A afirmação da continuidade natural parecem explicar as investigações matemáticas de Hípias quanto à rectificação do círculo, isto é, da invenção da quadratiz. A realidade será contínua se não há vazio no universo. Para isso, o universo, que é esférico, deve conter em si volumes com arestas rectilíneas, enchendo estas totalmente a esfera. Isto implica a possibilidade de passar de um volume cúbico a um volume esférico, problema que se reduz, em geometria plana, ao da quadratura do círculo.

      A intuição do grande todo que vibra em uníssono explica também a rejeição, por Hípias, de toda a forma de separatismo e, principalmente, da cisão entre o ser concreto e a essência.
      Finalmente, a intuição da continuidade dos seres exprimida pela adopção do grande princípio de
Empedocles (homoiosis). A semelhança une os seres e sutura o universo. O conhecimento, intelectual ou sensível, é um encontro, porque só o universo contínuo se pode dar a conhecer. Portanto, o verdadeiro saber será à imagem e semelhança do cosmos, um todo.

      O sofista anuncia, em todos estes aspectos,
Leibniz. Enquanto filómato e pluri-especialista, seria o intelectual ideal para a ciência moderna na busca de interdisciplinaridade.
      O conhecimento, para Hípias, decalca-se adequadamente pela estrutura da realidade. E deste modo, Hípias restaura um realismo ontológico e um optimismo epistemológico que, sem razão, se recusa muitas vezes à sofística. A racionalidade reencontra em Hípias um fundamento.


 BD10267_ Natureza e lei

      A antropologia de Hípias está no prolongamento directo da sua teoria da natureza. Estabelece uma oposição entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em causa. O facto de Hípias ter constatado que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça é, antes de mais, a expressão da violenta crise que abalou a sociedade grega no fim do século V a.C. e princípios do IV a.C..

      Também Hípias via a lei como um disfarce para o poder. Aliás, sabemos que ele foi um dos criadores da etnologia e, como embaixador e professor itinerante, contactou com múltiplas legislações positivas e verificou os desacordos e as contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade daquilo que as diferentes culturas chamam "justo" e " bom". É por isso que Hípias destrona o nomos e chama à lei "o tirano dos homens". Para Hípias a lei tiraniza a natureza. Para ele a natureza desempenha o papel de uma norma moral universal, que ultrapassa o particularismo do nomos. Hípias serve-se disto para explicar a existência de uma benevolência espontânea do homem pelo seu semelhante. A natureza cria uma socialidade que precisamente a sociedade destrói. Só a natureza humana que pode fundar uma sociedade boa. A justiça é vista por ele como obra do direito natural. A invocação da natureza pretende ter como resultado a exigência da igualdade.

      Pode-se dizer que Hípias foi favorável à democracia e quer-se reformador desta, se o cosmopolitismo é movido por esta ideia que o grupo humano deve integrar e não excluir. Com efeito, protestou contra o seu sistema de acesso às magistraturas, que podia dar, temporariamente, o poder a incompetentes. O intelectualismo de Hípias inclina-se a favor da democracia esclarecida. Enquanto homem universal aberto a todas as técnicas, Hípias prova que a posse de ofícios particulares não prejudica necessariamente os conhecimentos intelectuais gerais.

      Para concluir, vemos que Hípias não era de modo algum o faz-tudo superficial que, por vezes, se julgou ver nele. Possuidor de um espírito aberto e sistemático, construiu uma doutrina de que infelizmente só podemos entrever, através de escassos fragmentos que nos foram legados, as amplas perspectivas e a originalidade.
 

BD14582_Para saber mais sobre Hípias:
http://turnbull.dcs.st-and.ac.uk/~history/Mathematicians/Hippias.html


O anel de Giges


O Anel de Giges

(Platão - A República: O mito do Anel de Giges - os homens só são justos porque temem o castigo. A conduta ética depende apenas do medo da punição?)

[359b - 360a] glauco: Vamos provar que a justiça só é praticada contra a própria vontade dos indivíduos e devido à incapacidade de se fazer a injustiça, imaginando o que se segue. Vamos supor que se dê ao homem de bem e ao injusto igual poder de fazer o que quiserem, seguindo-os para ver até onde os leva a paixão. Veremos com surpresa o homem de bem tomar o mesmo caminho que o injusto, este im­pulsionado a querer sempre mais, impulso que se encontra em toda natureza, mas ao qual a força da lei impõe limites. O melhor meio de testá-los da maneira como digo seria dar-lhes o mesmo poder que, segundo dizem, teve Giges, o antepassado do rei da Lídia. Giges era um pastor a serviço do então soberano da Lídia. Devido a uma terrível tempestade e a um terremoto, abriu-se uma fenda no chão no local onde pastoreava o seu rebanho. Movido pela curiosidade, desceu pela fenda e viu, admirado, um cavalo de bronze, oco, com aberturas. E ao olhar através de uma das aberturas viu um homem de estatura gigantesca que parecia estar morto. O homem estava nu e tinha apenas um anel de ouro na mão. Giges o pegou e foi embora. Mais tarde, tendo os pastores se reunido, como de hábito, para fazer um relatório sobre os rebanhos ao rei, Giges compareceu à reunião usando o anel. Sentado entre os pastores, girou por acaso o anel, virando a pedra para o lado de dentro de sua mão, e imediatamente tornou-se invisível para os outros, que falavam dele como se não estivesse ali, o que o deixou muito espantado. Girou de novo o anel, rodando a pedra para fora, e tornou-se novamente visível. Perplexo, repetiu o feito para certificar-se de que o anel tinha esse poder e concluiu que ao virar a pedra para dentro tornava-se invisível e ao girá-la para fora voltava a ser visível. Tendo certeza disso, juntou-se aos pastores que iriam até o rei como representantes do grupo. Chegando ao palácio, seduziu a rainha e com a ajuda dela atacou e matou o soberano, apoderando-se do trono. Vamos supor agora que existam dois anéis como este e que seja dado um ao justo e outro ao injusto. Ao que parece não encontraremos ninguém suficientemente dotado de força de vontade para permanecer justo e resistir à tentação de tomar o que pertence a outro, já que poderia impunemente tomar o que quisesse no mercado, invadir as casas e ter relações sexuais com quem quisesse, matar e quebrar as armas dos outros. Em suma, agir como se fosse um deus. Nada o distinguiria do injusto, ambos tenderiam a fazer o mesmo e veríamos nisso a prova de que ninguém é justo porque deseja, mas por imposição. A justiça não é, portanto, uma qualidade individual, pois sempre que acreditarmos que podemos praticar atos injustos não deixaremos de fazê-lo.
De fato, todos os homens crêem que a injustiça lhes traz individualmente mais vantagens do que a justiça, e têm razão, se levarmos em conta os adeptos dessa doutrina. Se um homem que tivesse tal poder não consentisse nunca em cometer um ato injusto e tomar o que quisesse de outro, acabaria por ser consi­derado, por aqueles que conhecessem o seu segredo, como o mais infeliz e tolo dos homens. Não deixariam de elogiar publicamente a sua virtude, mas para disfarçarem, por receio de sofrerem eles próprios alguma injustiça. Era isso o que tinha a dizer.

(MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. Rio Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p.30-32)

O conceito de felicidade


O conceito de Felicidade
(Ética a Nicômaco Cap.6 e 7 - de Aristóteles (384-22 a.C.)

6.
Mas como entendemos o bem? Ele não é certamente semelhante às coisas que somente por acaso têm o mesmo nome. São os bens uma coisa só, então, por serem derivados de um único bem, ou por contribuírem todos para um único bem, ou eles são uma única coisa apenas por analogia? Certamente, da mesma forma que a visão é boa no corpo, a razão é boa na alma, e identicamente em outros casos.

Mas talvez seja melhor deixar de lado estes tópicos por enquanto, pois um exame detalhado dos mesmos seria mais apropriado em outro ramo da filosofia. Acontece o mesmo em relação à forma do bem; ainda que haja um bem único que seja um predicado universal dos bens, ou capaz de existir separada e independentemente, tal bem não poderia obviamente ser praticado ou atingido pelo homem, e agora estamos procurando algo atingível. Talvez alguém possa pensar que vale a pena ter conhecimento deste bem, com vistas aos bens atingíveis e praticáveis; com efeito, usando-o como uma espécie de protótipo, conheceremos melhor os bens que são bons para nós e, conhecendo-os, poderemos atingi-los. Este argumento tem alguma plausibilidade, mas parece colidir com o método científico; todas as ciências, com efeito, embora visem a algum bem e procurem suprir-lhe as deficiências, deixam de lado o conhecimento da forma do bem. Mais ainda: não é provável que todos os praticantes das diversas artes desconheçam e nem sequer tentem obter uma ajuda tão preciosa. Também é difícil perceber como um tecelão ou um carpinteiro seria beneficiado em relação ao seu próprio ofício com o conhecimento deste "bem em si", ou como uma pessoa que vislumbrasse a própria forma poderia vir a ser um médico ou general melhor por isto. Com efeito, não parece que um médico estude a "saúde em si", e sim a saúde do homem, ou talvez até a saúde de um determinado homem; ele está curando indivíduos. Mas já falamos bastante sobre estes assuntos.

7.
Voltemos agora ao bem que estamos procurando, e vejamos qual a sua natureza. Em uma atividade ou arte ele tem uma aparência, e em outros casos outra. Ele é di­ferente em medicina, em estratégia, e o mesmo acontece nas artes restantes. Que é então o bem em cada uma delas? Será ele a causa de tudo que se faz? Na medicina ele é a saúde, na estratégia é a vitória, na arquitetura é a casa, e assim por diante em qualquer outra esfera de atividade, ou seja, o fim visado em cada ação e propósito, pois é por causa dele que os homens fazem tudo mais. Se há portanto um fim visado em tudo que fazemos, este fim é o bem atingível pela atividade, e se há mais de um, estes são os bens atingíveis pela atividade. Assim a argumentação chegou ao mesmo ponto por um caminho diferente, mas devemos tentar a demonstração de maneira mais clara.
Já que há evidentemente mais de uma finalidade, e escolhemos algumas delas (por exemplo, a riqueza, flautas ou instrumentos musicais em geral) por causa de1 algo mais, obviamente nem todas elas são finais; mas o bem supremo é evidente­mente final. Portanto, se há somente um bem final, este será o que estamos procurando, e se há mais de um, o mais final dos bens será o que estamos procurando. Chamamos aquilo que é mais digno de ser perseguido em si mais final que aquilo que é digno de ser perseguido por causa de outra coisa, e aquilo que nunca é desejável por causa de outra coisa chamamos de mais final que as coisas desejáveis tanto em si quanto por causa de outra coisa, e portanto chamamos absolutamente final aquilo que é sempre desejável em si, e nunca por causa de algo mais. Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelên­cia, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mesma.

(MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. Rio Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p.40-42)