sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Os modelos educacionais na aprendizagem on-line*
Especialista em mudanças na educação presencial e a distância.
Modelos educacionais e comunidades de aprendizagem
Temos literatura abundante sobre comunidades de aprendizagem, sobre a aprendizagem em rede, principalmente na aprendizagem informal. A sociedade conectada em rede aprende de forma muito mais flexível, através de grupos de interesse (listas de discussão), de programas de comunicação instantânea e pesquisando nos grandes portais. Enquanto a escola mantém rígidos programas de organização do ensino e aprendizagem, inúmeros grupos profissionais trocam experiências de forma muito mais constante e aberta. Há milhares de redes de colaboração, por exemplo, em medicina, divididas por especialidades, por temas e o mesmo acontece em todas as áreas de conhecimento. É ainda muito incipiente o fenômeno para podermos avaliar até onde a aprendizagem efetiva acontece nestes ambientes informais mais do que nos formais.
Ao mesmo tempo, as organizações formais de ensino estão utilizando mais intensamente estes ambientes para motivar os alunos, para estabelecer vínculos, para discutir temas relevantes, para aprofundar em grupo leituras feitas individualmente, tanto nos cursos presenciais como nos a distância.
Nesta fase de transição em que nos encontramos, ainda predomina nas escolas o modelo disciplinar, centrado no professor, enquanto que as comunidades de aprendizagem exigem mais interdisciplinaridade e foco no aluno, para aproveitar todo o potencial participativo. Até agora predomina o uso dos ambientes virtuais em situações pontuais, como por exemplo em fóruns, para discussão de tópicos específicos. O conceito de comunidade implica em compromissos mais amplos e constantes do que os de realizar tarefas isoladas. Por isso as comunidades virtuais de aprendizagem, para cursos semi-presenciais ou a distância, pressupõem modelos educacionais mais centrados nos alunos e na aprendizagem flexível pessoal e grupal.
A EAD em rede está contribuindo para superar a imagem de individualismo, de que o aluno tem que ser um ser solitário, isolado em um mundo de leitura e atividades distantes do mundo e dos outros. A Internet traz a flexibilidade de acesso junto com a possibilidade de interação e participação. Combina o melhor do off line, do acesso quando a pessoa quiser com o on-line, a possibilidade de conexão, de estar junto, de orientar, de tirar dúvidas, de trocar resultados. É fundamental o papel do professor-orientador na criação de laços afetivos. Os cursos que obtêm sucesso, que tem menos evasão, dão muita ênfase ao atendimento do aluno e à criação de vínculos.
O modelo de EAD que mais cresce no Brasil combina a aula com o atendimento on-line: tele-aulas por satélite ao vivo, tutoria presencial e apoio da Internet. Aulas ao vivo para dezenas ou centenas de tele-salas, simultaneamente, onde em cada uma há uma turma de até cinqüenta alunos, que assiste a essas aulas sob a supervisão de um tutor local e realiza algumas atividades complementares na sala. Há alguma interação entre alunos e professores através de perguntas mandadas via chat e que podem ser respondidas ao vivo via teleconferência, depois de passarem por um filtro de professores auxiliares ou tutores. Essas aulas são complementadas nas salas com atividades supervisionadas por um tutor presencial e outras, ao longo da semana, orientadas por um tutor on-line.
É um modelo muito atraente, porque combina mobilidade com a tradição de aprender com o especialista. Principalmente para pessoas mais simples assusta menos e induz a pensar que educação a distância depende ainda da informação do professor. As atividades a distância, se bem feitas, conferem autonomia aos alunos, e, se combinadas com atividades colaborativas, podem compor um conjunto de estratégias combinadas muito interessantes e dinâmicas. O problema está na massificação, na manutenção de tutores generalistas mal pagos e tutores on-line sobrecarregados.
Outro modelo a distância predominante é via redes, mais conhecido como educação on-line, onde o aluno se conecta a uma plataforma virtual e lá encontra materiais, tutoria e colegas para aprender com diferentes formas de organização da aprendizagem: umas mais focadas em conteúdos prontos e atividades até chegarmos a outras mais focadas em pesquisa, projetos e atividades colaborativas, onde há alguns conteúdos, mas o centro é o desenvolvimento de uma aprendizagem ativa e compartilhada.
O foco em projetos colaborativos se desenvolve com rapidez e traz um dinamismo novo para a EAD. Há cursos que se apóiam em cases, em análise de situações concretas ou em jogos, o que lhes conferem muito dinamismo, participação e ligação grande com o mercado.
Muitas das dificuldades do on-line é que é confundido com o modelo assíncrono em que cada aluno começa em um período diferente, estuda sozinho e tem pouca orientação.
Hoje há muitas opções diferentes de estudos on-line e caminhamos para termos ainda o on-line com muitas mais opções audiovisuais, interativas, fáceis de acessar e gerenciar e a custos bastante baixos.
Temos os cursos on-line assíncronos, baseados em conteúdos prontos e algum grau de tutoria, em que os alunos se inscrevem a qualquer momento.
Temos o mesmo tipo de cursos, com mais interação. Os alunos participam de grupos, de debates como parte das estratégias de aprendizagem. Combinam atividades individuais e de grupo e têm também uma orientação mais permanente.
Um outro tipo de cursos on-line têm períodos pré-estabelecidos. Começam em datas previstas e vão até o final com a mesma turma, como acontece em muitos cursos presenciais atualmente. Dentro desse formato, há dois modelos básicos, com variáveis.
modelo centrado em conteúdos, em que o importante é a compreensão de textos, a capacidade de selecionar, de comparar e de interpretar idéias análise de situações. Esses conteúdos podem estar disponíveis no ambiente virtual do curso e também em textos impressos ou em CD-s que os alunos recebem. Geralmente há tutores para tirar dúvidas e alguma ferramenta de comunicação assíncrona como o fórum.
E há um segundo modelo em que se combinam leituras, atividades de compreensão individuais, produção de textos individuais, discussões em grupo, pesquisas e projetos em grupo, produção de grupo e tutoria bastante intensa. Nos cursos on-line que começam em períodos certos, com tempos pré-determinados é mais fácil formar grupos, trabalhar com módulos.
O conteúdo do curso e as atividades em parte estão preparados, mas dependem muito da qualidade e integração do grupo, da colaboração. É mais focado em colaboração do que em leitura de textos. O importante neste grupo são as discussões, o desenvolvimento de projetos e atividades colaborativas. O curso em parte está pronto e em parte é construído por cada grupo.
“Uma comunidade de aprendizagem on-line é muito mais que apenas um instrutor interagindo mais com alunos e alunos interagindo mais entre si. É, na verdade, a criação de um espaço no qual alunos e docentes podem se conectar como iguais em um processo de aprendizagem, onde podem se conectar como seres humanos. Logo eles passam a se conhecer e a sentir que estão juntos em alguma coisa. Eles estão trabalhando com um fim comum, juntos”.[1]
Uma variável deste modelo inclui alguns encontros ao vivo, que podem ser para aulas expositivas, ou para tirar dúvidas ou para apresentação de pesquisas. É um on-line mais semi-presencial.

Modelos híbridos on-line
 Os modelos híbridos on-line, que têm atividades síncronas e assíncronas parecem mais adequados para estudantes iniciantes, em fase de formação e progressivamente se pode diminuir os tempos síncronos, na medida em que os alunos vão adquirindo maior autonomia.
Os cursos mais individualizados e assíncronos, nos quais o aluno se inscreve quando acha conveniente e segue o ritmo que lhe parecer melhor (dentro de certos limites), são mais indicados para alunos mais adultos e com bastante experiência profissional. O on-line atual mais assíncrono e personalizado é para pessoas mais adultas, com experiência e que precisam de flexibilidade e têm motivação e autodisciplina. Como pessoas mais adultas e motivadas, estão acostumados a enfrentar desafios, a gerenciar o tempo, qualidades indispensáveis para a educação on-line assíncrona.
Caminhamos para o on-line mais audiovisual. Teremos plataformas com todos os recursos integrados, audiovisuais e interativos. O on-line mais colaborativo pode ajudar a alunos que têm dificuldade de concentração, de gerenciamento do tempo com a criação de grupos para pesquisa, atividades colaborativas e também com o acompanhamento de professores orientadores de aprendizagem. Se cada aluno tem seu orientador se sentirá mais seguro, terá a quem recorrer. A combinação de atividades em grupo e de orientação personalizada é um dos caminhos para que realmente a educação on-line avance.
Em todos esses modelos costuma haver pólos locais ou algum tipo de apoio ao aluno distante, com diversos graus de infra-estrutura, mais adequada, em geral, na propiciada por universidades públicas com apoio de prefeituras locais, e há instituições que não têm pólos locais pré-determinados e fazem atividades de avaliação na sede ou em locais designados ad hoc.
No Brasil não temos cursos certificados totalmente on-line, por imposição do Ministério da Educação que exige ao menos as avaliações feitas de modo presencial. Também os grupos estrangeiros têm dificuldade em se instalar plenamente, pela necessidade de as instituições que atuarem aqui terem capital nacional e reconhecimento no MEC. Se os cursos feitos on-line em instituições estrangeiras tivessem uma aprovação mais fácil pelo MEC teríamos uma competição muito mais forte do que a que existe atualmente.

Algumas contradições nas comunidades de aprendizagem
Focamos na universidade a aprendizagem colaborativa como a que facilita mais a aprendizagem. Defendemos a construção de comunidades em ambientes virtuais, como uma forma flexível para criar vínculos, manter a motivação e atender a diferentes estilos de aprendizagem. Se isto é importante, por que não prevalecem nos cursos a distância ou semi-presenciais?
A maioria dos cursos continua focada no conteúdo mais do que na colaboração, na aprendizagem individual mais do que na grupal. Por que? Na EAD predominam adaptações dos mesmos modelos presenciais. Os alunos estão acostumados a focar o conteúdo, seja transmitido pelo professor ou lido em textos. Esse modelo é adaptado nos cursos a distância. O papel do professor é menos direto (a não ser nos cursos por tele-aula), mas o foco continua na leitura de textos impressos ou na tela.
Esse modelo se choca com o da construção conjunta do conhecimento pelos alunos, O conceito de comunidade de aprendizagem implica em um deslocamento do professor e do conteúdo para o grupo, que participa, se envolve, pesquisa, interage, cria, com a mediação de algum orientador. Esta situação é nova seja no presencial como no virtual. É para ela que caminhamos em todos os níveis do ensino, porque supõe um avanço teórico e metodológico. Mas demora, porque, além de nova, costuma se chocar com o modelo multiplicador de muitas instituições que estão preocupadas em diminuir custos e baixar mensalidades. Os modelos focados em conteúdo pronto ou em tele-aula (para muitos alunos) são muito mais rentáveis do que os modelos colaborativos, que precisam de tempos de mediação, de acompanhamento professores experientes para grupos não muito grandes e isso custa mais do que os modelos conteudistas.
Outro motivo do avanço relativamente pequeno das comunidades de aprendizagem é que muitos alunos não têm acesso fácil e pessoal à Internet. Frequentemente esse acesso só acontece num pólo local, mas não em casa. Sem o acesso direto, é difícil construir uma comunidade virtual. Também os ambientes virtuais onde acontece a interação costumam ser muito simples, pouco atraentes e estimulantes. Em geral são fóruns escritos, onde nem sempre é fácil encontrar as contribuições significativas entre muitos textos relativamente repetidos. Os ambientes de chat costumam ser no modo texto e com poucas formas de gerenciamento efetivo. Com o crescimento da banda larga, nos encontramos numa fase de transição de ambientes em que predomina o modo texto, para outros mais audiovisuais, mais ricos de recursos. Com a popularização do ambiente Second Life[2] há uma procura por ambientes em três dimensões, ambientes que recriam a sensação de profundidade e de imersão em espaços familiares para aprendizagem. Sem dúvida facilitarão o contato visual entre pessoas, a interação, a discussão, a orientação.

Modelos educacionais para os próximos anos
A educação caminha, fundamentalmente, em duas direções diferentes, uma mais centrada na transmissão de informações e outra mais focada na aprendizagem e em projetos. Ambas terão muita interferência das tecnologias e formatos diferentes dos que conhecemos, principalmente no presencial.
Modelo 1: A multiplicação do ensino centrado no professor, na transmissão da informação, de conteúdo e na avaliação de conteúdos aprendidos.
Esse modelo terá diversos formatos tanto no ensino presencial como no a distância.
  • Multiplicação de aulas de transmissão em tempo real (tele-aulas), com acesso às vezes em uma tele-sala e em outros de qualquer lugar onde estiverem os alunos. Depois haverá atividades de leitura, pesquisa, compreensão de textos, avaliação de conteúdo.
  • Aulas simultâneas para várias salas (vários campi) com um professor principal e professores assistentes locais combinadas com atividades on-line em plataformas digitais.
  • Aulas gravadas e acessadas a qualquer tempo e de qualquer lugar através da Internet ou da TV digital, focando conteúdo, compreensão e avaliação dessa compreensão. Os alunos poderão tirar dúvidas em determinados períodos da semana.
Os cursos presenciais se tornarão progressivamente semi-presenciais. Exigirão alguns momentos de encontro físico, mais freqüentes no primeiro ano do curso, diminuindo essa freqüência  posteriormente. O restante do tempo será dedicado a atividades de aprendizagem baseadas em leituras, compreensão de textos, tirar dúvidas e realizar processos de avaliação de compreensão de conteúdo.
Nos cursos a distância haverá modelos pela TV digital ou plataformas multimídias WEB, com alguns momentos de aulas ao vivo ou gravadas, atividades de leitura, pesquisa, com momentos de orientação dos professores e avaliação de compreensão de conteúdo. E teremos cursos totalmente prontos, disponibilizados ao ritmo de cada aluno, com uma mistura de materiais audiovisuais e impressos, combinados com tutoria on-line. Caminharemos para realizar avaliações on-line, sem a obrigatoriedade da presença física.

Modelo 2: O foco na aprendizagem, no aluno e na colaboração
Em instituições educacionais mais focadas no aluno e na aprendizagem do que no professor e na transmissão de informação, teremos alguns momentos de informação ao vivo ou gravada, mas predominarão a experimentação, o desenvolvimento de atividades individuais e grupais de aprendizagem teórico-prática, de projetos de pesquisa acadêmicos, de inserção no ambiente de trabalho, de intervenção e modificação de uma realidade social, de criação de contextos. Os professores orientarão mais que ensinarão, acompanharão mais do que informarão. Organizarão, orientarão e avaliarão processos e “não darão aula” no sentido tradicional de foco na transmissão da informação.  Estes cursos serão semi-presenciais ou totalmente on-line. Teremos algumas escolas ou universidades mais inovadoras, que trabalharão sem disciplinas, por solução de problemas, por projetos transdisciplinares, sem um currículo totalmente predeterminado.
A maior parte das instituições fará um mix de conteúdo e pesquisa, de algumas aulas informativas e de orientação de pesquisa, de um mix entre disciplinas e projetos interdisciplinares integrados.
A formatação destes modelos centrados no aluno e na aprendizagem incluirá o uso freqüente de tecnologias conectadas, móveis e multimídia para grupos pequenos e grandes.
Os modelos serão semi-presenciais ou on-line, com muita ênfase no planejamento, desenvolvimento e avaliação de atividades de pesquisa, de projetos. As aulas presenciais servirão para planejar as etapas da pesquisa. Depois acontece a pesquisa através do acompanhamento virtual e, ao final, os alunos voltam ao presencial para avaliação e para organizar novas propostas de temas de pesquisa e assim sucessivamente.
Os cursos a distância deste modelo focado no aluno, utilizam mais as ferramentas colaborativas, a pesquisa individual e grupal, a publicação compartilhada, o conceito de portfólio individual e grupal, construído ao longo do processo.
Haverá cada vez mais o uso de tecnologias de comunicação em tempo real. No primeiro modelo pedagógico, mais para ouvir o professor; no segundo, mais para interagir, orientar e colaborar.
Nos cursos a distância teremos os que focam a transmissão via tele-aula, com alguma interação para perguntas, dúvidas e os que são oferecidos pela rede, a partir de aulas gravadas ou ao vivo, com alguma interação para dúvidas.
O modelo centrado na transmissão da informação tende a ser mais barato, a ganhar mais em escala, a ter um efeito multiplicador maior. Por isso será adotado por mais instituições, nos próximos anos, pela sua maior relação custo-benefício e por reforçar os padrões já conhecidos de ensino.
O segundo modelo, por precisar de mais orientação, é um modelo de mais qualidade, criativo e inovador; mas tende a ser mais caro, mas também pode ser rentável em pequena e grande escala. Precisará, porém, de gestão muito atenta e criteriosa. As instituições que souberem aplicar bem este modelo centrado no aluno e na colaboração terão um reconhecimento muito maior social e tenderão a crescer a médio e longo prazo.
A partir desses dois modelos básicos, teremos inúmeras variações, modelos híbridos, que procurarão equilibrar transmissão de informação e colaboração, conteúdo e pesquisa, informação pronta e conhecimento construído.
O que parece certo é que teremos cada vez menos aulas presenciais, fisicamente juntos e mais compartilhamento virtual das experiências de aprender com alguém mais preparado (os professores) e de aprender juntos, em rede.

Conclusão
 Tanto a educação presencial como a virtual caminham para modelos diferentes dos que estamos habituados. O presencial se flexibiliza com o virtual e aumenta a utilização de ambientes de aprendizagem com atividades de discussão individuais e em grupo. A educação a distância, na medida em que a sociedade se conecta mais, utiliza mais os mesmos ambientes virtuais para acesso à informação e para compartilhamento de discussões e experiências.
 A aprendizagem on line é uma constante no dia a dia, no trabalho, em casa, na vida. A educação formal precisa incorporar muito mais profundamente todas as possibilidades destes novos ambientes, principalmente focando o aluno e a participação como eixos de uma educação ativa e transformadora. É possível combinar, quando necessário,  tele-aulas para milhares de alunos e atividades colaborativas em grupos, que construam situações vivas de aprendizagem compartilhadas. Podemos aproveitar o melhor do modelo de transmissão com as vantagens do modelo de colaboração. Podemos avançar muito mais na integração dos modelos focados na transmissão, no conteúdo e no professor com os modelos colaborativos de efetiva pesquisa, colaboração e compartilhamento. Teremos inúmeras possibilidades de aprendizagem que combinarão o melhor do presencial (quando possível) com as facilidades do virtual. O importante é que os alunos aprendam de verdade no presencial e no on-line.
Caminhamos para ter as cidades digitais, conectadas, o acesso podendo ser feito de qualquer lugar e a qualquer hora e com equipamentos acessíveis. Quanto mais acesso, mais necessidade de mediação, de pessoas que inspirem confiança e que sejam competentes para ajudar os alunos a encontrar os melhores lugares, os melhores autores e saber compreendê-los e incorporá-los à nossa realidade. Quanto mais conectada a sociedade, mais importante é termos pessoas afetivas, acolhedoras, que saibam mediar as diferenças, facilitar os caminhos, aproximar as pessoas.

Bibliografia
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MORAN, José Manuel, MASETTO, Marcos, BEHRENS, Marilda. Novas tecnologias e mediação pedagógica. 12ª ed. São Paulo: Papirus, 2006.
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PALLOFF, Rena M., PRATT, Keith. Construindo comunidades de aprendizagem no ciberespaço – Estratégias eficientes para salas de aula on-line. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
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SCHLEMMER, E. - Ambientes Virtuais de Aprendizagem. Porto Alegre: ArtMed, 2005
SILVA, M. Sala de aula interativa. Rio de Janeiro: Quartet, 2000
SILVA, Marco (Org.). Educação On-line: teorias, práticas, legislação, formação corporativa. São Paulo: Loyola, 2003.


* Texto que será publicado no livro da ABED sobre educação on-line
[1] PALLOFF, Rena M. & PRATT, Keith. Construindo comunidades de aprendizagem no ciberespaço – Estratégias eficientes para salas de aula on-line. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.


O que é Filosofia e por que vale a pena estudá-la
(A. C. Ewing)
SEÇÃO INTRODUTÓRIA: A ORIGEM DO TERMO FILOSOFIA
Uma definição precisa do termo "filosofia" é impraticável. Tentar formulá-la poderia, ao menos de início, gerar equívocos. Com alguma espirituosidade, alguém poderia defini-la como "tudo e nada, tudo ou nada...". Melhor dizendo, a filosofia difere das ciências especiais na medida em que procura oferecer uma imagem do pensamento humano - ou mesmo da realidade, até onde se admite que isso possa ser feito -- como um todo. Contudo, na prática, o conteúdo de informação real que a filosofia acrescenta às ciências especiais tende a desvanecer-se até parecer não deixar vestígios. Acreditamos que esse desvanecimento seja enganoso. Mas devemos admitir que até aqui a filosofia não tem conseguido realizar suas grandes pretensões. Tampouco tem logrado êxito em produzir um corpo de conhecimentos consensual comparável ao elaborado pelas diversas ciências. Isso se deve em parte, embora não integralmente, ao fato de que, quando obtemos conhecimento verdadeiro a respeito de determinada questão situamos essa questão como pertencente à ciência e não à filosofia. 0 termo "filósofo" significava originariamente "amante da sabedoria", tendo surgido com a famosa réplica de Pitágoras aos que o chamavam de "sábio". Insistia Pitágoras em que sua sabedoria consistia unicamente em reconhecer sua ignorância, não devendo portanto ser chamado de "sábio", mas apenas de "amante da sabedoria". Nessa acepção, "sabedoria" não se restringia a qualquer dos domínios particulares do pensamento e, de modo similar, "filosofia" era usualmente entendida como incluindo o que hoje denominamos "ciência". Esse uso sobrevive ainda hoje em expressões como "filosofia natural". Na medida em que uma grande produção de conhecimento especializado em um dado campo ia sendo conquistada, o estudo desse campo se desprendia da filosofia, passando a constituir uma disciplina independente. As últimas ciências que assim evoluíram foram a psicologia e a sociologia. Dessa forma, poderíamos falar de uma tendência à contração da esfera da filosofia na própria medida em que o conhecimento se expande. Recusamo-nos a considerar filosóficas as questões cujas respostas podem ser dadas empiricamente. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia poderá acabar sendo reduzida ao nada. Os conceitos fundamentais das ciências, da figuração geral da experiência humana e da realidade (na medida em que formamos crenças justificadas a seu respeito) permanecem no âmbito da filosofia, visto que, por sua própria natureza, não podem ser determinados pelos métodos das ciências especiais. É sem dúvida desencorajador que os filósofos não tenham logrado maior concordância com respeito a esses assuntos, mas não devemos concluir que a inexistência de um resultado por todos reconhecido signifique que esforços foram realizados em vão. Dois filósofos que discordem entre si podem estar contribuindo com algo de inestimável valor, embora ambos não estejam em condição de escapar totalmente ao erro: suas abordagens rivais podem ser consideradas mutuamente complementares. O fato de filósofos distintos necessitarem dessa mútua complementação torna evidente que o ato de filosofar não é unicamente um processo individual, mas também um processo que possui uma contrapartida social. Um dos casos em que a divisão do trabalho filosófico se torna bastante proveitosa consiste na circunstância de que pessoas distintas usualmente enfatizam aspectos diferentes de uma mesma questão. Contudo, boa parte da filosofia volta-se mais para o modo pelo qual conhecemos as coisas do que propriamente para as coisas que conhecemos, sendo essa uma segunda razão pela qual a filosofia parece carecer de conteúdo. No entanto, discussões a respeito de um critério definitivo de verdade podem determinar, na medida em que recomendam a aplicação de um dado critério, quais as proposições que na prática deliberamos serem verdadeiras. As discussões filosóficas da teoria do conhecimento têm exercido, ainda que de modo indireto, importante efeito sobre as ciências.
UTILIZAÇÃO DA FILOSOFIA
Há uma questão que muita gente formula de imediato quando ouve falar de filosofia: qual a utilidade da filosofia? Não há certamente expectativa alguma de que ela contribua para a produção de riqueza material. Contudo, a menos que suponhamos que a riqueza material seja a única coisa de valor, a incapacidade da filosofia de promover esse tipo de riqueza não implica que não haja sentido prático em filosofar. Não valorizamos a riqueza material por si própria - aquela pilha de papel que chamamos de dinheiro não é boa por si mesma -, mas por contribuir para nossa felicidade. Não resta dúvida de que uma das mais importantes fontes de felicidade, ao menos para os que podem apreciá-la, consiste na busca da verdade e na contemplação da realidade; eis aí o objetivo do filósofo. Ademais, aqueles que, em nome de um ideal, não classificaram todos os prazeres como idênticos em seu valor, tendo chegado a experimentar o prazer de filosofar, consideraram essa experiência como superior em qualidade a qualquer outra. Visto que a maior parte dos bens que a indústria produz, excetuando os que suprem nossas necessidades básicas, valem apenas como fontes de prazer, torna-se a filosofia perfeitamente apta, no que se refere à utilidade, para competir com a maioria dos produtos industriais, quando poucos são os que podem dedicar-se, em tempo integral à tarefa de filosofar. Mesmo que entendêssemos a filosofia como fonte de um inocente prazer particularmente válido por si próprio (obviamente, não apenas para os filósofos, mas também para todos aqueles a quem eles ensinam e influenciam), não haveria razão para invejar tão pequeno desperdício da força humana dedicada ao filosofar.
Não esgotamos, porém, tudo o que pode ser dito em favor da filosofia. Pois, à parte qualquer valor que lhe pertença intrinsecamente acima de seus efeitos, a filosofia tem exercido, por mais que ignoremos isso, uma admirável influência indireta até mesmo sobre a vida de gente que nunca ouviu falar nela. Indiretamente, tem sido destilada através de sermões, da literatura, dos jornais e da tradição oral, afetando assim toda a perspectiva geral do mundo. Em grande parte, foi através de sua influência que se fez da religião cristã o que ela é hoje. Devemos originalmente a filósofos idéias que desempenharam papel fundamental para o pensamento em geral, mesmo em seu aspecto popular, como, por exemplo, a concepção de que nenhum homem pode ser tratado apenas como um meio ou a de que o estabelecimento de um governo depende do consentimento dos governados. No âmbito da política, a influência das concepções filosóficas tem sido expressiva. Nesse sentido, a Constituição norte-americana é, em grande parte, uma aplicação das idéias do filósofo John Locke; ela apenas substitui o monarca hereditário por um presidente. Similarmente, admite-se que as idéias de Rousseau tenham sido decisivas para a Revolução Francesa de 1789. É inegável que a influência da filosofia sobre a política pode às vezes ser nefasta: os filósofos alemães do século X1X podem ser parcialmente responsabilizados pelo desenvolvimento de um nacionalismo exacerbado que posteriormente veio a assumir formas bastante deturpadas. Todavia, não resta dúvida de que essa responsabilidade tem sido freqüentemente muito exagerada, sendo difícil determiná-la exatamente, o que se deve ao fato de aqueles filósofos terem sido obscuros. Contudo, se uma filosofia de má qualidade pode exercer influência nefasta sobre a política, com as filosofias de boa qualidade pode ocorrer o contrário. Não há meios de impedir tais influências sendo portanto extremamente oportuno que dediquemos especial atenção à filosofia com o intuito de constatar se concepções que exerceram alguma influência foram mais positivas do que nefastas. 0 mundo teria sido poupado de muitos horrores caso os alemães tivessem sido influenciados por uma filosofia melhor que a dos nazistas.
Torna-se, portanto, imperativo abandonar a afirmação de que a filosofia é destituída de valor, mesmo com respeito à riqueza material. Uma boa filosofia, ao influenciar favoravelmente a política, pode gerar uma prosperidade incapaz de ser alcançada sob a égide de uma filosofia inferior. Outrossim, o expressivo desenvolvimento da ciência, com seus conseqüentes benefícios de ordem prática, muito depende de seu backgroundfilosófico. Houve mesmo quem tenha chegado a afirmar, a nosso ver exageradamente, que o desenvolvimento da civilização como um todo seria concomitante às mudanças na idéia de causalidade, da concepção mágica de causalidade à científica. De qualquer modo, a idéia de causalidade faz parte do objeto da filosofia. A própria ‘perspectiva científica’, em grande parte, foi introduzida inicialmente pelos filósofos.
Todavia, certamente não estaremos nas melhores condições para fazer um estudo proveitoso da filosofia se a encararmos principalmente como uma via indireta de acesso à riqueza material. A principal contribuição da filosofia consiste no intangível background intelectual do qual muito dependem o clima espiritual e a feição geral de uma civilização. Nesse sentido, ocasionalmente se desenvolvem ambições ainda maiores. Whitehead, um dos mais expressivos e acatados pensadores modernos, descreve os dons da filosofia como "a capacidade de ver e de prever, aliada a um sentido do valor da vida, ou seja, o sentido da importância que anima todo esforço civilizado".1 Acrescenta ainda Whitehead que, "quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma filosofia de vida, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços". Para ele, a filosofia consiste em "uma tentativa de esclarecer as crenças que, em última instância, determinam nossa atenção, a qual integra a base de nosso caráter". De um modo ou de outro, podemos ter como certo que o caráter de uma civilização é enormemente influenciado por sua concepção geral da vida e da realidade. Até pouco tempo, para a maioria das pessoas, essa concepção era proporcionada pelo ensino religioso, mas as próprias concepções religiosas foram muito influenciadas pelo pensamento filosófico. Ademais, a experiência demonstra que as concepções religiosas podem conduzir-nos à loucura, a menos que sejam continuamente submetidas a uma avaliação racional. Os que rejeitam qualquer concepção religiosa devem ter o maior interesse em elaborar uma nova concepção para, se possível, substituir a crença religiosa. E fazê-lo significa engajar-se na filosofia.
Embora não passa substituir a filosofia, a ciência suscita problemas filosóficos. Pois ela não pode dizer-nos que lugar ocupam os fatos com que lida no esquema geral das coisas, não conseguindo nem mesmo esclarecer suas relações com os espíritos que os observam. Nem mesmo pode demonstrar, embora deva admitir, a existência do mundo físico ou a legitimidade do uso dos princípios da indução para prever as prováveis ocorrências futuras ou ultrapassar de alguma forma o que tem sido efetivamente observada. Nenhum laboratório científico pode demonstrar em que sentido os homens têm uma alma, se o universo tem ou não um propósito, se, e em que sentido, somos livres, e assim por diante. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia possa resolver esses problemas; no entanto, se ela realmente não puder, nada mais poderá fazê-lo, sendo certamente válido tentar descobrir ao menos se tais problemas podem ser solucionados. Veremos, que a própria ciência pressupõe continuamente conceitos que subsumem os domínios da filosofia E, da mesma forma que nenhuma ciência pode florescer se não admitirmos tacitamente uma resposta para certas questões filosóficas, não podemos fazer uso mental adequado da ciência, com o intuito de implementar nosso desenvolvimento intelectual, sem admitirmos uma visão de mundo mais ou menos coerente. Mesmo as melhores conquistas da ciência moderna não teriam sido alcançadas se os cientistas não tivessem adotado determinadas suposições de grandes e originais filósofos, nas quais basearam todo o seu proceder. A concepção "mecanicista" do universo, que caracterizou a ciência durante os últimos três séculos, é derivada principalmente do filosofia de Descartes. Por ter ocasionado maravilhosos resultados, o esquema mecanicista deve ser, em parte, verdadeiro, ainda que parcialmente inadequado, apressando-se o cientista em buscar no filósofo o necessário auxílio para erigir novo esquema que possa substituir o antigo.
Um segundo serviço inestimável prestada pela filosofia (especialmente pela "filosofia crítica") reside no hábito, por ela estimulado, de promover-se um julgamento imparcial considerando-se todas as facetas de uma questão, e na idéia que ela oferece do que seja a evidência e de que devemos buscar ou esperar de uma prova. Pode ser esse um importante questionamento das inclinações emocionais e das conclusões precipitadas, sendo especialmente necessário, e com freqüência negligenciado, em controvérsias políticas. Se ambos os lados considerassem suas diferenças políticas munidos de espírito filosófico, seria difícil admitir a eventualidade de uma guerra. O sucesso da democracia depende muito da habilidade dos cidadãos em distinguir um bom de um mau argumento, não se deixando enganar por confusões. A filosofia crítica estabelece um padrão ideal para o raciocínio correto e capacita quem a estuda a remanejar argumentos confusos. Talvez seja esse a motivação pela qual Whitehead afirma, na passagem acima citada, que "nenhuma sociedade democrática poderá alcançar êxito sem que a educação geral que a inspire exprima uma perspectiva filosófica".
Na medida em que admitirmos que certa cautela é desejável ao afirmarmos que os homens não deixam de viver de acordo com uma filosofia na qual acreditam, e enquanto atribuirmos a maior parte dos desacertos humanos exatamente à falta desse desejo de sintonia com ideais mais nobres, não poderemos negar a extrema relevância de crenças gerais a respeito da natureza do universo e do bem para a determinação da progresso ou da degeneração da humanidade. Algumas partes da filosofia inegavelmente produzem resultados práticos mais expressivos, mas não devemos por isso incorrer no erro de supor que a aparente inexistência de um suporte de ordem prática para determinado campo de estudo implica que a investigação desse campo seja destituída de sentido prático. Conta-se que um cientista, que costumava jactar-se de desprezar a dimensão prática de toda pesquisa, disse certa vez a respeito de uma: "0 melhor disso tudo é que ela possivelmente não revelará qualquer utilidade prática para quem quer que seja." Todavia, essa linha de pesquisa acabou levando à descoberta da eletricidade. De modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e aparentemente destituídos de utilidade prática terminam por exercer profunda influência sobre a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância, a ética e a religião que adotamos. Pois as diferentes partes da filosofia, os diferentes elementos que compõem nossa visão de mundo, deveriam integrar-se. Tal é pelo menos o objetivo, nem sempre alcançável, de uma boa filosofia. Sendo assim, conceitos à primeira vista muito distanciados de qualquer interesse de ordem prática podem vir a afetar de modo vital outros conceitos que envolvem mais de perto a vida diária.
Podemos compreender agora o motivo pelo qual a filosofia não precisa recear a questão de ter ou não valor prático. Devo ao mesmo tempo dizer que não aprovo de modo algum uma concepção puramente pragmática da filosofia. A filosofia merece ser valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de ordem prática. E a melhor maneira de assegurarmos esses bons efeitos práticos é nos dedicarmos à filosofia pela filosofia. Para encontrar a verdade, precisamos buscá-la desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil do ponto de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus efeitos práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito menos podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As crenças são úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são úteis.2
PRINCIPAIS DIVISÕES DA FILOSOFIA
A seguinte classificação é usualmente aceita como uma especificação dos diversos assuntos que compõem a filosofia.
(1) Metafísica.3 Essa disciplina é concebida como o estudo da natureza da realidade em seus aspectos mais gerais, na medida em que podemos fazê-lo. Ela lida com questões do seguinte tipo: De que modo a matéria se relaciona com o espírito? Qual dos dois é anterior? São os homens livres? 0 que chamamos de eu (self) é uma substância ou apenas uma seqüência de experiências? É o universo infinito? Deus existe? Até que ponto o universo é uma unidade ou uma diversidade? Até que ponto um sistema é racional?
(2) Recentemente, a filosofia crítica tem sido freqüentemente contraposta à metafísica (que nesse caso é às vezes denominada filosofia especulativa). A filosofia crítica consiste na análise e na crítica dos conceitos pertencentes ao senso comum e às ciências. As ciências pressupõem certos conceitos que não são suscetíveis de investigação por meio de métodos científicos, de modo que passam a integrar o âmbito da filosofia. Nesse sentido, todas as ciências, com exceção da matemática, pressupõem de alguma forma a concepção de lei natural; cabe à filosofia, e não a qualquer das ciências particulares, examinar tal concepção. De modo similar, pressupomos, em nossos diálogos mais comuns e menos filosóficos, conceitos fortemente imbuídos de problemas filosóficos, como matéria, espírito, causa, substância e número. Uma importante tarefa da filosofia consiste exatamente em analisar conceitos desse tipo, precisar o que significam e determinar em que medida sua aplicação ao estilo do senso comum pode ser justificada. A parte da filosofia crítica que trata da investigação da natureza e dos critérios de verdade, assim como da maneira pela qual obtemos conhecimento, é chamada de epistemologia (teoria do conhecimento). Questões específicas desse campo são, entre outras, as seguintes: Como podemos definir a verdade? Qual a distinção entre conhecimento e crença? Podemos estar certos daquilo que sabemos'? Quais as funções relativas do raciocínio, da intuição e da experiência sensorial?
No presente trabalho, iremos ocupar-nos desses dois ramos da filosofia , como constituindo sua parte filosófica mais fundamental e característica. Apontaremos ainda algumas disciplinas suplementares, que possuem certa afinidade com a filosofia na acepção que lhe atribuímos neste livro, embora dela sejam distintas na medida em que são dotadas de relativa autonomia. Esses são os ramos que definiremos a seguir.
FILOSOFIA E DISCIPLINAS AFINS
(1) É difícil separar a lógica da epistemologia. Mesmo assim, ela é normalmente considerada uma disciplina autônoma. Trata-se de um estudo dos diferentes tipos de proposições e de suas relações que justificam uma inferência. Certas partes da lógica revelam acentuada afinidade com a matemática; outras poderiam igualmente ser classificadas como pertencentes à epistemologia.
(2) A ética ou filosofia moral lida com os valores e a problemática do "dever". Ela formula questões como; Qual o bem supremo? Qual a definição de bem? A retidão de um ato depende unicamente de suas conseqüências? Nossos juízos sobre nossos próprios deveres são subjetivos ou objetivos? Qual a função de um ato punitivo? Qual a razão última pela qual não devemos mentir?
(3) A filosofia política consiste na aplicação da filosofia (da ética principalmente) a questões relacionadas com os indivíduos enquanto organizados sob a égide de um Estado. Ela investiga questões do seguinte tipo: Um indivíduo possui direitos que contrariam os interesses do Estado? Há no Estado algo mais além dos indivíduos que o constituem? É a democracia a melhor forma de governo?
(4) A estética consiste na aplicação da filosofia ao exame da arte e da noção de beleza. É típico da estética formular questões do seguinte tipo: A beleza é objetiva ou subjetiva? Qual é a função da arte? Para que aspectos de nossa natureza apelam as diversas formas de beleza?
(5) 0 termo mais geral - teoria do valor - é às vezes utilizado de modo a abranger o estudo dos valores considerados em si mesmos, embora esse ramo possa ser incluído na ética ou na filosofia moral. De qualquer modo, é sempre possível entendermos a noção de valor como uma concepção geral cujas espécies e aplicações particulares são desenvolvidas pelas disciplinas apresentadas nos itens (2), (3) e (4).
A TENTATIVA DE EXCLUIR A METAFISICA EM FACE DA OBJEÇAO DE QUE MESMO A FILOSOFIA CRI'TICA A PRESSUPÕE
Diversas tentativas, algumas das quais discutiremos posteriormente, foram feitas no sentido de excluir a metafísica como injustificável e confinar a filosofia à sua versão crítica e às cinco áreas afins que mencionamos, na medida em que podem ser consideradas uma abordagem ou um estudo crítico dos conceitos da ciência e da vida prática. Tal concepção foi ocasionalmente expressa pela afirmação de que a filosofia consiste, ou deve consistir, na análise das proposições do senso comum. É óbvio que tal afirmação, quando se pretende exclusiva, chega a ser exagerada. Pois, (1) mesmo que uma metafísica legítima e positiva não seja possível, haverá certamente um campo de estudos que se ocupe da refutação dos argumentos falaciosos que supostamente conduziriam a conclusões metafísicas; e tal campo faria obviamente parte da filosofia. (2) A menos que as proposições do senso comum sejam inteiramente falsas, sua análise deverá fornecer-nos uma explicação geral daquela parcela da realidade à qual se referem as proposições, ou seja, proporcionar, de algum modo, parte da explicação geral do real que a metafísica busca oferecer. Nesse sentido, poderíamos dizer que, se existir, o espírito - obviamente ele existe em certo sentido - podemos obter uma metafísica do espírito a partir da análise das proposições do senso comum relativas a nós mesmos, na medida em que tais proposições são verdadeiras - de fato, seria difícil admitir que todas as nossas proposições do senso comum acerca dos seres humanos possam ser de todo falsas. Talvez não seja essa uma metafísica altamente elaborada e de grande alcance, mas de qualquer modo envolverá genuínas proposições metafísicas. Mesmo se afirmarmos que tudo que conhecemos é apenas aparência, a aparência implica uma realidade que aparece e um espírito para o qual ela aparece, e como estes não podem também ser apenas aparências, estaremos ainda admitindo alguma metafísica. Até mesmo behaviorismo é uma metafísica. Não desejamos com isso afirmar a possibilidade atual ou mesmo futura de ,ama metafísica, no sentido de um sistema elaborado que nos propicie grande dose de informação sobre a estrutura geral da realidade e as coisas que mais desejamos conhecer. Isso só pode ser feito ambulando, tentando-se estabelecer e criticar as proposições metafísicas em questão. Não obstante, por mais que sejamos apaixonadamente metafísicos, não passaremos sem a filosofia crítica. A mera tentativa de dispensá-la acarretará a produção de uma metafísica deplorável. Pois, mesmo na metafísica, devemos partir dos conceitos do senso comum e das ciências, já que não dispomos de outros. Ademais, se nossos fundamentos são seguros, devemos cuidadosamente analisá-los e examiná-los. Dessa forma, não podemos separar totalmente a filosofia crítica da metafísica, o que não impede um filósofo de atribuir muito maior importância a um desses elementos.
A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ESPECIAIS
A filosofia difere das ciências especiais com respeito a (1) sua maior generalidade e (2) a seu método. Ela investiga os conceitos que são supostos simultaneamente por inúmeras ciências diferentes, além das questões que não se situam no âmbito das ciências. A ciência compartilha com o senso comum os conceitos que demandam essa investigação filosófica, mas as descobertas de uma ciência particular suscitam ou intensificam alguns problemas especiais, como, por exemplo, n da ``relatividade", que exigem um tratamento filosófico por não poderem ser discutidos adequadamente pela ciência em questão. Alguns pensadores, como Herbert Spencer, conceberam essencialmente a filosofia como uma síntese dos resultados das ciências, mas hoje em dia os filósofos, em geral, não adotam essa concepção. Sem dúvida, se podemos obter resultados filosóficos através de processos de síntese e generalização a partir das descobertas científicas, isso deveria ser feito. Não obstante, o único modo de sabermos se podemos ou não fazê-lo é tentar, e nesse ponto a filosofia não tem alcançado muito progresso nem se revelado muito proveitosa. As grandes filosofias do passado consistiram parcialmente numa investigação dos conceitos fundamentais do pensamento, em tentativas de estabelecer fatos alegadamente distintos daqueles com os quais lidava a ciência mediante métodos bastante diferentes dos científicos. Elas comumente foram influenciadas, mais do que parece, pelo estado contemporâneo da ciência, mas, sem dúvida, seria muito enganador descrevê-las essencialmente como uma síntese dos resultados da ciência. Mesmo filósofos antimetafísicos, como Hume, estiveram mais voltados para os pressupostos da ciência do que para seus resultados.
Tampouco devemos admitir sem reservas, como uma verdade da filosofa, o resultado ou suposição científica válido em sua própria esfera. Sabemos, por exemplo, que a física contemporânea parece ter mostrado que o tempo da física é inseparável do espaço, o que de modo algum nos autoriza a renunciar esse resultado como um princípio filosófico pelo qual o tempo pressuporia o espaço. Pois, pode ocorrer que o resultado em questão seja verdadeiro apenas com relação ao tempo da física, e isso apenas porque o tempo da física é medido em termos de espaço. Por conseguinte, não precisa ser verdadeiro com relação ao tempo da nossa experiência, do qual o tempo da física é uma abstração ou construção. A ciência pode progredir por meio de ficções metodológicas usando termos num sentido invulgar que a filosofia tem de corrigir. 0 termo filosofia da ciência é usualmente aplicado ao ramo da lógica que lida de maneira especializada com os métodos das diversas ciências.
0 MÉTODO DA FILOSOFIA COMPARADO AO MÉTODO CIENTÍFICO
Com respeito a seus métodos, a filosofia difere fundamentalmente das ciências especiais. A não ser quando se aplica a matemática, todas as ciências utilizam processos de generalização empírica, mas a filosofia reserva a tal método um lugar muito modesto. Por outro lado, a tentativa de assimilar a filosofia à matemática, embora muito freqüente, não tem sido bem-sucedida (exceto em determinados ramos da lógica que, pela própria natureza, têm mais afinidade com a matemática do que com os demais setores da filosofia). Particularmente, parece humanamente impossível que os filósofos possam alcançar a certeza e a clareza que caracterizam a matemática. Essa diferença entre os dois campos de estudo pode ser atribuída a várias causas. Em primeiro lugar, não se tem mostrado possível determinar, em filosofia, o significado dos termos do mesmo modo inequívoco que em matemática. Assim sendo, seu significado pode mudar de forma quase imperceptível ao longo de uma argumentação, sendo muito difícil nos certificarmos de que diferentes filósofos utilizam a mesma palavra com o mesmo sentido. Em segundo lugar, somente na matemática encontramos conceitos simples formando a base de inúmeras inferências complexas e, todavia, rigorosamente válidas. Em terceiro lugar, a matemática pura é hipotética, ou seja, não nos pode dizer o que se passa no mundo real, como, por exemplo, o número de coisas situadas num dado lugar, mas apenas o que ocorrerá se isso for verdade, como, por exemplo, que encontraríamos 12 cadeiras numa sala caso lá houvesse 5 + 7 cadeiras. A filosofia, contudo, objetiva ser categórica, isto é, dizer-nos o que de fato ocorre; conseqüentemente, em filosofia, não é apropriado, como geralmente se faz em matemática, fazer deduções apenas a partir de postulados ou definições.
Desse modo, é impossível encontrar uma analogia adequada entre os métodos da filosofia e os de qualquer outra ciência. É igualmente impossível definir de modo preciso qual é o método da filosofia, a não ser limitando de forma grotesca o seu objeto. A filosofia não emprega um método único, mas uma variedade de métodos que diferem de acordo com o objeto ao qual são aplicados. E a tentativa de defini-los de maneira independente de sua aplicação carece de qualquer propósito útil. De fato, isso é muito perigoso. Ne passado, ela freqüentemente conduziu a uma limitação equivocada do escopo da filosofia, excluindo tudo aquilo que não se sujeitasse ao controle de determinado método escolhido como caracteristicamente filosófico. A filosofia requer grande variedade de métodos, pois deve abranger em sua interpretação todo tipo de experiência humana. Não obstante, ela está longe de ser meramente empírica, pois, tanto quanto possível, tem a tarefa de apresentar uma imagem coerente dessas experiências e a partir delas inferir o que pode ser inferido de uma realidade distinta da experiência humana. No que se refere à teoria do conhecimento, deve a filosofia submeter a uma crítica construtiva todas as modalidades de pensamento; contudo, devemos reservar um lugar nessa visão para qualquer modo de pensar que se nos apresente como autojustificado no que há de melhor em nossas reflexões comuns, e não filosóficas, e não rejeitá-lo por diferir dos outros. Os critérios filosóficos são, em linhas gerais, a coerência e a abrangência; o filósofo deve visar a apresentação de uma visão coerente e sistemática da experiência humana e do mundo, tão esclarecedora quanto o permita a natureza dos casos investigados, mas não deve buscar coerência à custa de rejeitar aquilo que de direito é conhecimento real ou crença justificada. Uma séria objeção a uma filosofia consiste na acusação de que ela sustenta algo em que não podemos acreditar na vida cotidiana. Essa objeção poderia ser feita a uma filosofia que logicamente conduzisse, como algumas, à conclusão de que não há um mundo físico, ou de que todas as nossas crenças, científicas ou éticas, carecem de qualquer justificação.
FILOSOFIA E PSICOLOGIA
Há uma ciência que mantém uma relação bastante peculiar com a filosofia: a psicologia. Na prática, é muito mais provável que as teorias psicológicas particulares venham a exercer influência sobre um argumento filosófico ou, uma teoria a respeito do bem e do mal do que as teorias particulares de uma ciência física também válida a relação inversa: exceto com relação às partes que se aproximam da fisiologia, a psicologia, mais do que qualquer setor particular da física, corre o risco de sofrer as conseqüências adversas oriundas de um equívoco de ordem filosófica. É provável que isso aconteça devido ao fato de que apenas recentemente a psicologia emergiu como ciência especial, ao contrário do que ocorreu com as ciências físicas, que há muito já haviam alcançado posição estável, dispondo de bastante tempo para esclarecer seus conceitos básicos de acordo com seus próprios objetivos. Há uma geração, a psicologia era comumente ensinada por filósofos, sendo muito difícil considerá-la uma ciência natural. Por conseguinte, não teve tempo para completar o processo de esclarecimento de seus conceitos fundamentais, necessário para torná-los, se não filosoficamente inquestionáveis, suficientemente claros e úteis para a prática da ciência em questão. 0 estado contemporâneo da física sugere-nos que, quando uma ciência atinge um estágio mais avançado, tende a se deparar mais uma vez com problemas filosóficos. Poderíamos então afirmar que o período no qual uma ciência é independente da filosofia não coincide com seu florescimento ou com os estágios mais avançados de sua trajetória, mas com a longa fase que separa esses dois extremos. Nesse sentido, a filosofia pode contribuir de algum modo para a pendente reconstrução da física.
CETICISMO
Os filósofos têm-se preocupado muito com uma criatura bastante estranha: o cético absoluto. Não obstante, tal pessoa não existe. Se existisse, refutá-lo seria impossível. Similarmente, ele não nos poderia refutar ou afirmar alguma coisa, nem mesmo seu ceticismo, sem contradizer a si mesmo, pois a afirmação de que nenhuma espécie de conhecimento ou crença pode ser justificada é uma crença. Em contrapartida, também não poderíamos provar que o cético está errado, na medida em que toda prova deve admitir algo, ainda que seja alguma premissa, e também as leis da lógica. Se o princípio da não-contradição não é verdadeiro, não podemos refutar algum mediante o argumento de esse alguém está caindo em contradição. Um filósofo não pode, portanto, partir ex nihilo e provar tudo: ele é forçado a fazer certas suposições. Em particular, tem de admitir a verdade das leis fundamentais da lógica, pois de outro modo não seria possível utilizar argumentos de qualquer espécie ou mesmo formular quaisquer enunciados significativos. Entre essas leis da lógica, assinalamos duas que são muito importantes: trata-se dos princípios da não-contradição e do terceiro excluído. Quando aplicados a proposições, o primeiro afirma que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa, enquanto o segundo afirma que toda proposição deve ser verdadeira ou falsa. Quando os aplicamos a coisas, o primeiro afirma que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo ou ter e não ter uma qualidade ao mesmo tempo, e o segundo, que uma coisa é ou não é e possui ou não uma qualidade. Concordamos em que esses princípios não soam de modo a entusiasmar ninguém, mas o fato é que todo nosso conhecimento e todo nosso pensamento dependem deles. Se a afirmação de algo não excluísse sua própria contradição, nenhum significado poderia ser atribuído a qualquer asserção e ninguém poderia jamais ser contestado, na medida em que tanto a asserção quanto a refutação poderiam ser corretas. Não podemos negar que, em certos casos, pode ser equivocado atribuir ou não a algo uma qualidade. Seria incorreto dizer que certas pessoas são ou não calvas, não só devido à ausência de uma definição precisa do que seja "calvo" mas também porque, na prática, "calvo" e "não-calvo" significam extremos entre os quais reside uma classe intermediária de casos em que não deveríamos aplicar um desses termos, e sim "parcialmente calvo" ou "mais ou menos calvo".
Não se trata, portanto, de uma pessoa possuir ou não uma qualidade definida. Todas as pessoas são dotadas de um grau particular de calvície, embora o uso dos termos "calvo" e "não-calvo" não deixe claro a que graus de calvície desejamos referir-nos. Tenho a impressão de que as objeções ocasionalmente feitas ao princípio do terceiro excluído se escoimam em desentendimentos desse tipo. De modo similar, o princípio da não-contradição é perfeitamente compatível com o fato de um homem ser bom com relação a certo aspecto e mau com relação a outro, ou mesmo com relação ao mesmo aspecto, ser bom num momento e mau em outro.
A filosofia deve também aceitar a evidência da experiência imediata , embora essa atitude não nos leve tão longe quanto poderíamos esperar. Não dispomos normalmente de experiência imediata sobre outros espíritos, a não ser o nosso, sendo provável que a evidência da experiência imediata não possa dizer-nos que os objetos físicos que parecemos experienciar existem independentemente de nós mesmos. Tornaremos oportunamente a abordar essa questão. Logo constatamos que, não obstante, deveremos fazer novas suposições, se quisermos admitir que conhecemos certas coisas a respeito das quais a vida cotidiana não oferece qualquer suporte para que possamos achar que as conhecemos realmente. Todavia, não devemos concluir que a impossibilidade de se justificar uma crença do senso comum mediante um argumento implica necessariamente sua falsidade. Pode ser que, no nível do senso comum, possuamos um conhecimento genuíno ou uma crença justificada que seja por si próprio estabelecido e que dispense uma justificação filosófica. Não cabe ao filósofo, nesse caso, provar a verdade da crença, pois isso pode ser impossível, mas dar-lhe a melhor explicação possível, examinando acuradamente aquilo que ela envolve, Se usarmos a expressão "crença instintiva" para denominar aquele tipo de crença que tomamos como evidentemente verdadeira antes de qualquer crítica filosófica, e que continua a parecer evidentemente verdadeira em nossa vida cotidiana após a crítica filosófica e a despeito dela, podemos afirmar com Bertrand Russell - que não pode certamente ser acusado de credulidade demasiada - que a única razão para rejeitar uma crença instintiva é o fato de ela colidir com outras crenças instintivas, sendo um dos principais objetivos da filosofia produzir um sistema coerente baseado em nossas crenças instintivas, corrigindo-as o menos possível e só para preservar sua coerência. Nesse sentido, já que a teoria do conhecimento só pode basear-se num estudo das coisas reais que conhecemos e da maneira pela qual as conhecemos, podemos afirmar que o fato de uma teoria filosófica em particular levar à conclusão de que não podemos conhecer certas coisas que evidentemente conhecemos, ou que não podemos justificar certas crenças que obviamente são justificadas, é mais uma objeção à teoria filosófica em questão que ao conhecimento ou às crenças que ela questiona. Por outro lado, seria tolice supor que todas as crenças do senso comum devem ser verdadeiras da maneira como se nos apresentam. Talvez seja função da filosofia aperfeiçoá-las, mas não descartá-las, ou alterá-las de modo a torná-las irreconhecíveis.
FILOSOFIA E SABEDORIA PRÁTICA
A filosofia está associada tanto ao saber teórico quanto à sabedoria prática, à qual aludimos através de expressões do tipo "considerar filosoficamente as coisas". De fato, o sucesso da filosofia teórica não nos oferece qualquer garantia de que seremos filósofos no sentido prático ou de que agiremos e sentiremos de modo correto sempre que nos envolvermos em determinadas situações práticas. Uma das doutrinas favoritas de Sócrates é a de que sempre podemos fazer o bem desde que saibamos o que é o bem; não obstante, isso só é verdade se acrescentamos ao significado do termo "saber" uma adequada nitidez emocional daquilo que sabemos do ponto de vista teórico. 0 fato de sabermos (ou acreditarmos) que fazer algo que desejamos iria acarretar muito mais sofrimento a uma outra pessoa - o Sr. A - do que prazer para nós mesmos, sendo, em conseqüência, não-recomendável, não nos impede, todavia, de praticar tal ação, pois a idéia de causar sofrimento ao Sr. A poderia parecer-nos menos repugnante que a de perdermos aquilo que cobiçamos. Na medida em que é inteiramente impossível a qualquer ser humano sentir o sofrimento alheio com a mesma intensidade que os seus, ocorre sempre a possibilidade de sermos tentados a abandonar nossos deveres, fazendo-se necessário não apenas o conhecimento, mas também o exercício da vontade. Nem somos constituídos de modo a ser sempre fácil, quando somos abandonados à nossa própria moral, nos opormos a um forte desejo, ainda que disso dependa nossa própria felicidade. A filosofia não é garantia de nossa conduta correta ou do perfeito ajustamento de nossas emoções às nossas crenças filosóficas. Nem mesmo do ponto de vista cognitivo é ela capaz de nos dizer o que devemos fazer. Para isso, precisamos, além de princípios filosóficos, não só do conhecimento empírico dos fatos relevantes e da capacidade de prever as prováveis conseqüências, mas também de uminsight da situação particular, de maneira a podermos aplicar adequadamente nossos princípios.
Obviamente, não é minha intenção afirmar que a filosofia não contribui para vivermos uma vida exemplar, mas apenas que não pode por si só levar-nos a viver de modo exemplar nem decidir o que seja esse tipo de vida. Insisto, entretanto, em que ela pode, a esse respeito, pelo menos proporcionar valiosas sugestões. E teria muito mais a dizer sobre a conexão entre filosofia e vida exemplar, se incluísse neste livro uma discussão especial da ética, disciplina filosófica que trata do bem e da ação correta. Não obstante, devemos fazer uma distinção entre filosofia teórica, enquanto explicação do que é, e ética filosófica, enquanto explicação do bem e da ação correta.
Não pretendo, ao recorrer a essa ilustração, dar a impressão de ser um hedonista, ou uma pessoa convencida de que o prazer e a dor sejam os únicos fatores relevantes para que se possa julgar uma ação boa ou má. Não sou assim.
A metafísica ou a filosofia crítica nos é de pouca valia para decidirmos o que devemos fazer. Pode levar-nos a conclusões que facilitem encararmos as adversidades de maneira mais serena, mas isso depende da filosofa, não havendo infelizmente acordo universal entre os filósofos quanto à possibilidade de uma concepção otimista do mundo ser justificada filosoficamente. No entanto, devemos seguir a verdade aonde quer que ela nos leve, já que nosso espírito, uma vez desperto, não pode apoiar-se no que carece de justificativa, pois o pensamento não pode ser uma falsidade. Ao mesmo tempo, devemos estudar atentamente e não recusar-nos a ouvir as alegações dos que pensam ter alcançado, mediante recursos que não podem ser incluídos nas categorias usuais do senso comum, verdades inspiradoras e reconfortantes a respeito da realidade. Não devemos tomar como certo que as pretensões de uma cognição genuína em matéria de experiência místico-religiosa, com relação a um diferente aspecto da realidade, devam ser necessariamente descartadas coma carentes de justificativa apenas por não se ajustarem a um materialismo sugerido, mas de modo algum provado e, agora, nem mesmo sustentado pela ciência moderna.
Notas
1 Whitehead, A. N., Adventures of Ideas, pg. 125.
2 Nossa crítica à atitude "pragmatista" encontra-se nas pgs. 53-4 e 63-4 adiante.
3 Esse termo tem origem no fato de ter sido discutido na obra de Aristóteles que foi colocada após (meta) seu trabalho sobre a física.

Bibliografia
Whitehead, A. C.: The Function of Reason, Princeton: Princeton University Press.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Decifrando a Diversidade Sexual

Texto - Homossexualidade: realidade e preconceito

1. O sentido da sexualidade
(De João Silvério Trevisan)
Perguntar por que sou homossexual é tão inútil quanto perguntar por que nasci com olhos azuis e não castanhos, comentava o escritor francês Jean Genet, numa antiga entrevista. Com isso, ele queria dizer que existe uma subjetividade insubstituível em ambos os casos: é tão pessoal ter os olhos azuis quanto ser homossexual. E, portanto, desnecessário buscar explicações.
Ninguém pode acusar ninguém de ter nascido branco ou preto, loiro ou moreno, magro ou gordo. No caso da sexualidade, a confusão se instaura porque entram em discussão motivos que nada têm a ver com a lógica da subjetividade.
No decorrer dos séculos, a prática sexual tendeu a ser atropelada por motivações invasivas, ou seja, há sempre interferências de ordem médica, religiosa ou política para explicar a sexualidade, cuja diversidade é tão grande quanto o número de seres humanos.
Nas sociedades ocidentais, homossexuais foram perseguidos pela inquisição, em nome da fé cristã – e até hoje, os argumentos bíblicos são um dos maiores entraves à aceitação da homossexualidade. Tomam-se trechos isolados da Bíblia para condenar a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo. Mas escondem-se trechos em que a Bíblia parece totalmente inadequada aos costumes modernos, como apedrejar mulheres adúlteras ou ter direito de escravizar pessoas. Quer dizer, a Bíblia é manipulada por motivos alheios a ela, do modo que melhor convém a quem a manipula.
No campo político, homossexuais já foram perseguidos durante o nazismo, chegando a serem mandados para campos de concentração. Sob o comunismo estalinista, em vários países, foram condenados a trabalhos forçados ou aprisionados por delito contra a moral socialista.
Durante muito tempo, a ciência tem servido para embasar essas perseguições e discriminações, por considerar a prática homossexual como anormal. A psiquiatria, por exemplo, definia a homossexualidade como uma fase imatura da heterossexualidade ou resultada de um desvio da personalidade.
"O texto reflete a opinião do autor"

2. Conceito e compreensão

Todos esses argumentos, no fundo, partem de um conceito equivocado de que a sexualidade só serve para a procriação. Daí, ser considerado normal só aquilo que visa perpetuar a espécie. Não por acaso, a masturbação ainda é vista como um pecado – por desperdiçar a semente. Por essa ótica, também os casais sem filhos deveriam ser proibidos. Solteiros, nem falar. Com a chegada da pílula anticoncepcional, tudo virou do avesso: nem a mulher era obrigada a fazer sexo procriativo, nem os casais deveriam transar apenas para fazer filhos. Mais ainda: atualmente existem novas tecnologias de reprodução, graças às quais não é necessário sequer o relacionamento sexual entre um homem e uma mulher. Muita gente prefere a reprodução por inseminação artificial ou fecundação in vitro, desvinculando sexualidade e reprodução. Ou seja, a sexualidade é um componente da psique humana muito mais rico do que os donos da verdade médico-religiosa nos impunham.
A humanidade vai sofrendo novas compreensões no desenrolar da história, e seus costumes vão mudando. Até o século 18, mulheres não podiam ser atrizes nem cantoras em teatro e ópera, pois o palco era considerado inadequado para o recato feminino. Isso valeu pelo menos até o começo do século 20. Talvez seja difícil de acreditar, mas no Brasil, até 1932 as mulheres não podiam votar. Nada a estranhar, se considerarmos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos só foi adotada a partir de 1948. Até meados da década de 1960, a virgindade era um tema tabu para mulheres: se não se casassem virgens, eram consideradas prostitutas e desprezadas.
"O texto reflete a opinião do autor".

3. Orientação sexual

Durante séculos, a homossexualidade foi reprimida e perseguida em função da consideração simplista de que apenas a prática heterossexual seria normal. Olhando pela ótica da diversidade sexual humana, essa heteronormatividade é totalmente equivocada.
Hoje, compreende-se que a heterossexualidade é apenas um tipo específico de orientação sexual. Existem outras, portanto. A homossexualidade é uma delas, a bissexualidade é outra. Quer dizer, seres humanos são sexualmente orientados para diversas direções, independentemente de quererem ou não.
Se muita gente se descobre homossexual depois de um casamento heterossexual é porque percebeu muito tarde algo de que não tinha plena consciência ou não tinha condições de encarar.
Uma pessoa pode também se sentir homossexual e se reprimir deliberadamente, para seguir determinadas prescrições e normas que estão contra sua natureza, ou seja, contra sua orientação sexual. Se essa pessoa não se assumir, correrá sérios riscos de conflito psicológico – depressão e alcoolismo, entre outros.
Para se sentir fiel a si mesma, ela terá que fazer uma escolha, nem sempre fácil – pois às vezes vai contra a expectativa de sua família ou de sua igreja ou de sua comunidade. Para seu próprio bem, essa pessoa terá que fazer uma opção em função de sua orientação sexual.
Veja, portanto, a diferença entre “orientação sexual” e “opção sexual”: apesar de não ser uma escolha, a orientação só será plenamente possível com uma opção tomada.
A homossexualidade não tem aumentado nos dias de hoje, nem aumentará no futuro. O que vai aumentar, com certeza, é a consciência dos direitos de orientação sexual. Ou seja, as pessoas estão mais tranquilas para vivenciar a sua sexualidade. Independente de ser homossexual, heterossexual ou bissexual.
"O texto reflete a opinião do autor".

 

 

4. Preconceito

Diante do quadro exposto acima, pode-se entender como o preconceito teve terreno farto para florescer. Preconceito significa exatamente o que está expresso no termo: é um julgamento que se faz antes de se conhecer o conceito.
Resulta de uma generalização. Se não gosta de negros por algum motivo, você está utilizando uma lógica irreal (racista) ao concluir que só gente branca é legal. Ou se você acha que as mulheres são burras, você está automaticamente implicando que todos os homens são inteligentes pelo fato de serem homens. Cá entre nós, só alguém totalmente desinformado poderia pensar uma coisa dessas. Mas todo preconceito é insidioso: ele se instala por motivos irracionais e nem sempre conscientes.
O mesmo ocorre com o preconceito sexual. Se você julga que homossexuais são imorais por natureza, está supondo algo absurdo: que só se pode ser moral praticando a heterossexualidade. Como se não houvesse a possibilidade de ser heterossexual e imoral: por exemplo, gerando filhos e depois jogando-os na rua. Por outro lado, homossexuais não caíram do céu: com certeza, são filhos de heterossexuais. Ser heterossexual ou ser homossexual não se pega como doença: é da natureza de cada um/a. 
Portanto, o preconceito é perigoso por falsear a realidade. Às vezes, ele é tão intenso e tão irracional que evolui para a homofobia. Existem líderes religiosos ou políticos que transformaram o sentido da sua vida em condenar e perseguir a homossexualidade. Não conseguem pensar nem falar em outra coisa. Isso caracteriza uma verdadeira obsessão, uma mania. Se a mania resulta de recusa ou medo extremos, então se transforma naquilo que a psicologia chama de fobia. 
Existe gente que tem fobia de cobra, de lugar público, de altura. O que caracteriza esse medo extremo (fobia) é a impossibilidade de controlá-lo. Ora, se uma pessoa não controla uma parte de si, significa que ela está sendo movida por motivos irracionais ou inconscientes. São motivos maiores do que ela. Isso pode caracterizar uma doença, e em muitos casos requer tratamento.
"O texto reflete a opinião do autor".

 

5. Homofobia


Homofóbicos entram nessa categoria. Têm ódio irracional de homossexuais, numa espécie de racismo sexual – numa terminologia mais específica, são sexistas.
A homofobia é uma visão sexista contra homossexuais. É um preconceito levado ao extremo. Agredir um casal de homens que estão abraçados ou de mãos dadas na rua é homofobia porque você parte do princípio de que eles são homossexuais e os ataca, sem sequer se questionar. Pode errar feio, como aconteceu recentemente no interior de São Paulo, quando um grupo de rapazes agrediu dois homens abraçados, sem saber que eles eram pai e filho – chegaram ao extremo de cortar um pedaço da orelha do pai. Ou quando atacaram dois amigos na Avenida Paulista, em São Paulo, só porque eles estavam próximos de locais frequentados por homossexuais – e os dois na verdade eram heterossexuais. Esses homofóbicos estão de tal modo possuídos pelo ódio que perdem o freio do raciocínio.
O que move a fobia contra homossexuais? Os motivos imediatos que instrumentalizam a homofobia podem ser convicções religiosas e políticas extremadas. Muitos neo-pentecostais fanáticos têm convicção absoluta de que a homossexualidade é uma abominação ante os olhos de Deus. Até o ponto de gastar dinheiro para colocar um outdoor com essa frase, como aconteceu numa outra cidade do interior paulista. Eles não apenas reprovam: atacam moralmente, quando não fisicamente, porque não conseguem conter sua agressividade. Há também os conservadores políticos radicais, como neonazistas, por exemplo. Nessa categoria entram inúmeras gangues de skinheads que odeiam igualmente judeus, negros, nordestinos e homossexuais. Mas há também pessoas comuns, que cresceram num ambiente que favoreceu suas convicções homofóbicas.
Muitos sequer temem manifestar publicamente sua convicção de que homossexuais têm que morrer, que são sujos, transmitem aids e, por isso, são lixo a ser descartado. Ora, essa gente está propondo o extermínio. E por um motivo torpe, quer dizer, puro ódio irracional. 
"O texto reflete a opinião do autor".
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*neo-pentecostais* são pessoas que relatam não se apegar a bens matérias e têm um jeito diferente de falar sobre Deus. O mundo espiritual está dividido entre Deus e o Diabo. Para eles a doença só existe em quem não acredita em Deus e sua origem é o demônio.


6. Motivações da homofobia
Há uma infinidade de motivações psicológicas dissimuladas por debaixo das tais convicções religiosas ou políticas, que funcionam apenas como gatilho para a violência. Frequentemente, essas pessoas estão se defendendo de alguma coisa que as ameaça. Quer dizer, sentem-se atacadas e acham legítimo usar o ódio ou a violência para se defender. Movidas por alguma frustração pessoal, elas precisam criar bodes expiatórios, e os atacam como culpados dessa frustração. Pode ser que sofram de baixa auto estima, então descontam em quem consideram mais desprezível.
Pode ser que estejam condicionadas por problemas emocionais desde sua infância, criadas em famílias disfuncionais – por exemplo, com pai bêbado e violento. Pode ser que tenham sofrido violência sexual na infância. Podem ser também meros filhos de classe média, mimados por total falta de autoridade ou ausência dos pais. 
Uma outra possibilidade mais sutil, é que um homofóbico pode ser um homossexual com dificuldade de se assumir. São comum os crimes contra lésbicas, gays, travestis e transexuais serem cruéis. Num deles, reportado na imprensa, um homossexual foi morto com 97 facadas, o que comprova um ódio excepcional. Na ocasião, o ex-deputado Fernando Gabeira escreveu alguma coisa que nunca esqueci: se 7 facadas são suficientes para matar uma pessoa, a quem o assassino estaria tentando matar com as outras 90? 
O próprio Gabeira aponta uma possibilidade: estaria matando no homossexual diante de si aquele homossexual que estava dentro dele mesmo. A vítima funcionava, então, como um espelho a ser quebrado, exterminado, para acabar com a visão de algo que denunciava a homossexualidade reprimida do assassino, ameaçado pela simples existência do gay. 
Heterossexuais tranquilos com sua sexualidade não perdem a esportiva por tão pouco. 
"O texto reflete a opinião do autor".
7. Gênero e costumes sociais
Sabemos que os costumes sociais são mutáveis, pois fazem parte do contexto de cada época. Os papéis determinados culturalmente para machos e fêmeas são relativos e mudam de uma cultura para outra ou até dentro de uma mesma cultura, no decorrer da história. 
Espera-se que homens sejam fortes, não chorem, brinquem de carrinhos, etc. Das mulheres espera-se que sejam meigas, obedientes, boas mães e excelentes donas de casa. Devem ser vaidosas, passar baton e usar brinco. No entanto, hoje vemos que homens cuidam de seus filhos, usam brincos, choram, mulheres usam calças compridas, dirigem taxi, são policiais, chefiam famílias.
É muito comum as chamadas lésbicas masculinizadas - que contestam o padrão de gênero - sofrerem preconceito por se afastarem do feminino consagrado. E por que não contestar o padrão de gênero? Hoje existem mulheres nas mais diversas profissões.
A mesma situação acontece com os homens vaidosos, que cuidam do corpo, ou que querem adotar uma criança sem estar com uma companheira.
Na sociedade atual não cabe mais falar em uma determinada forma de ser homem ou mulher, ou seja, de vivenciar a identidade de gênero. Isto posto, podemos dizer que não há mais um padrão pré-estabelecido para o exercício dos papéis feminino e masculino.
"O texto reflete a opinião do autor"
8. Travestis e Transexuais
Hoje em dia é corriqueiro encontrarmos, em cidades grandes e médias de inúmeros países do mundo, homens que se vestem com roupas de mulher e mantêm características femininas. São as chamadas travestis. Tal fato é comum também no Brasil. Muitos brasileiros consideram travestis como sinônimo de prostituição e marginalidade. Isso não é verdade. Existem muitas travestis que, na contramão dos preconceitos existentes, se impuseram nas mais diversas profissões, como professoras, advogadas, enfermeiras, políticas e cientistas. Esse é o caso, por exemplo, da cearense Janaína Dutra, a primeira travesti a conseguir carteira e filiação junto à OAB. Ou de Kátia Tapeti, que se tornou a primeira travesti vereadora e líder da câmara municipal em sua cidade, no interior do Piauí.
A grande maioria das travestis sofre de forte marginalização social. Se você imaginar a trajetória pessoal dessas travestis não irá estranhar que muitas delas sejam obrigadas a viver da prostituição, caiam nas drogas e se envolvam com a marginalidade. O psicanalista Hugo Denizart escreveu um livro com entrevistas de travestis cujas histórias contam repetidamente o mesmo percurso de violência e exclusão.
Em suas cidades distantes dos grandes centros, quando esses meninos começam a se comportar de maneira afeminada, são humilhados, surrados e até estuprados por primos, irmãos, vizinhos e mesmo pelo pai. Entre os 9 e os 13 anos, essas crianças são quase sistematicamente expulsas da escola e de casa, ficando sem família e sem uma educação formal mínima. Assim, quase analfabetas, não têm condições de emprego, restando-lhes a alternativa da prostituição. Em geral, acabam fugindo para as grandes cidades, onde começam a se prostituir muito jovens, às vezes ainda menores de idade. Desgarradas socialmente, sem perspectivas de futuro e com auto estima abalada, tornam-se presas fáceis de doenças fatais como a aids, ataques criminosos e consumo de drogas, condenadas que estão a viver às margens da sociedade.

Além da questão de gênero e orientação sexual, algumas pessoas relatam ter a sensação de ter nascido no corpo errado, ou seja, com um sexo biológico que não corresponde ao gênero. Quer dizer, há um descompasso entre seu sexo biológico e sua psicologia. Graças às novas tecnologias, elas passaram a ter condições de readequar o seu sexo. Assim, já existem hoje homens transexuais (pessoas que nasceram biologicamente do sexo feminino, mas se reconhecem como homens) e mulheres transexuais (pessoas que biologicamente nasceram do sexo masculino, mas que se reconhecem como mulheres). Muitas e muitos chegaram a ter filhos, viveram uma vida marital, para só depois descobrirem e vivenciarem sua verdadeira identidade de gênero.
"O texto reflete a opinião do autor"

Nota de esclarecimento da equipe de mediação: as pessoas cuja a identidade de gênero difere do gênero designado de acordo com os genitais são normalmente identificadas como transexuais ou travestis.

 

9. Preconceito contra travestis e transexuais

Se no Brasil é grande o preconceito contra lésbicas e gays, ainda mais violento e generalizado é o preconceito contra travestis e transexuais. Isso ocorre graças ao desconhecimento do seu histórico de marginalização forçada. A situação das travestis e transexuais requer que o Estado implemente políticas públicas para essa população. Elas vivenciam a marginalização, violência, desemprego e várias vulnerabilidades individuais e sociais. Só recentemente, e de maneira ainda tímida, tem-se pensado em integrar essas cidadãs brasileiras no mercado de trabalho, oferecendo-lhes cursos profissionalizantes. Não se trata de paternalizar e vitimizar as travestis e transexuais, mas de dar-lhes oportunidade de serem parte da sociedade democrática em que deveriam estar inseridas.
O psicanalista Carl Jung dizia que cada um/a de nós tem que representar socialmente um papel, que ele chamava de “persona”. O papel de gênero funciona como uma persona (uma personagem, uma máscara) criada pela sociedade, que muitas vezes escamoteia a verdadeira identidade de gênero. O filme “Minha vida em cor de rosa” aborda com grande propriedade esta questão: as peripécias de um garotinho que gosta de se vestir de menina. Por motivos diversos, esse garoto teve uma percepção diferente do que a sociedade define como sendo próprio de cada um dos dois gêneros, o masculino e o feminino.
Na verdade, desde que nascemos, a sociedade nos impõe comportamentos considerados próprios a cada gênero. Começa pelas cores: a bebê menina é identificada com lacinhos e roupinhas cor de rosa. O bebê menino tem que usar cores azuis, e nada de penduricalhos. E assim pela vida afora: meninas brincam com bonecas, meninos com carrinhos; mulher tem que ser discreta, homem durão; mulher é emotiva, homem é racional; mulher veste saia e se enfeita, homem veste calça e está proibido de se maquiar. Mas nada disso tem a ver necessariamente com ser homem ou mulher: na Escócia homens vestem saiotes e nos países árabes, longas saias. Após a década de 1960, quando o movimento feminista se espalhou por quase todo o mundo, as sociedades tomaram consciência de que essas divisões de papéis eram discutíveis e, frequentemente, injustas – quando, por exemplo, mulheres ganham menos exercendo o mesmo ofício dos homens.
"O texto reflete a opinião do autor"

10. Conclusão
Uma sociedade democrática precisa estar aberta às várias formas de sexualidade, pois a principal característica das democracias é permitir as diferenças entre os cidadãos/ãs e garantir respeito à diversidade, para uma convivência equilibrada. São muitos os países que ainda perseguem gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Mas há também outros que estão atualizando suas políticas para reconhecer os direitos desta população. Trata-se, portanto, de algo mais amplo, que tem a ver com a liberdade de expressão sexual.
Num mundo em que os cromossomos estão sendo manipulados e os transplantes dos mais variados tipos são possíveis, tais como de mão e de face, é natural que se pense a sexualidade como um território muito mais diversificado, com categorias mais elásticas, ligadas não apenas ao biológico mas também ao psicológico. O mesmo se diga do amor. Graças a uma compreensão estreita e secularmente arraigada, estamos acostumados a categorias muito mesquinhas de amor entre as pessoas.
Amar não é prerrogativa de uma única categoria de orientação sexual, a heterossexual, nem de padrão de beleza, aquele vendido nos comerciais de televisão. Há homens que amam homens, mulheres que amam mulheres, e quem ame igualmente gente do seu sexo e do outro. Há gente que ama gordos/as, magros/as, mais velhos, mais jovens. Na verdade, o desejo é tão misterioso e diversificado quanto o próprio ser humano. Nos dias atuais, o direito de amar é mais um direito da democracia, portanto, mais um direito humano a ser respeitado.
"O texto reflete a opinião do autor"