Tales de Mileto: o distraído
O preconceito e a
hostilidade em relação à Filosofia não é algo novo, recente, mas, ao contrário,
remontam às origens da Filosofia na Grécia Antiga.
Talvez o registro mais
antigo desse preconceito seja aquele de que foi vítima Tales de Mileto, que
viveu no século VII a.C. e que é considerado o primeiro filósofo da história. A
respeito dele contava-se a seguinte anedota, bastante difundida na Grécia Antiga
e recuperada por Platão em sua obra Teeteto1. Tales era tão
interessado no estudo dos astros que costumava caminhar olhando para o céu.
Certo dia, absorto em seus pensamentos e raciocínios, acabou tropeçando e
caindo em um poço, sendo motivo de riso e caçoada para uma escrava que ali se
encontrava. Espalhou-se, então, o boato de que Tales se preocupava mais com as
coisas do céu, esquecendo-se das que estavam debaixo de seus pés. “Essa
pilhéria”, adverte Platão, “se aplica a todos os que vivem para a Filosofia”
(idem). Essa imagem de um homem distraído e trapalhão, porém, não parece
condizer com a verdade sobre Tales, que, ao que tudo indica, era uma pessoa bem
esperta, viva e inteligente. É o que se conclui, por exemplo, de uma outra
anedota contada sobre ele e registrada por Aristóteles em sua obra A política e atribuída a Tales por causa de sua sabedoria:
“Como o censuravam pela pobreza e zombavam de
sua inútil filosofia, o conhecimento dos astros permitiu-lhe prever que haveria
abundância de olivas. Tendo juntado todo o dinheiro que podia, ele alugou,
antes do fim do inverno, todas as prensas de óleo de Mileto e de Quios.
Conseguiu-as a bom preço, porque ninguém oferecera melhor e ele dera algum
adiantamento. Feita a colheita, muitas pessoas apareceram ao mesmo tempo para
conseguir as prensas e ele as alugou pelo preço que quis. Tendo ganhado muito
dinheiro, mostrou a seus amigos que para os filósofos era muito fácil
enriquecer, mas que eles não se importavam com isso. Foi assim que mostrou sua
sabedoria.”2
Na verdade, Tales deve ter
gozado de grande prestígio em sua época. Tanto que passou para a posteridade
como um dos sete sábios da Grécia3: na política, empenhou-se em organizar as
cidades gregas da Jônia para enfrentar a ameaça dos persas; como engenheiro,
quis desviar o curso de alguns rios para fins de navegação e irrigação; como
pesquisador, investigou as causas das inundações do rio Nilo, rompendo com as
explicações míticas que se davam para elas; como astrônomo, previu um eclipse
solar e descobriu a constelação denominada Ursa Menor; como matemático e
geômetra, teria descoberto um método para medir a altura e uma pirâmide do Egito, do qual teria
derivado o famoso “teorema de Tales”.
Além disso, não podemos
esquecer que Tales foi, segundo Aristóteles (Pré-Socráticos, 1985, p. 7), o
primeiro a dar uma resposta racional, isto é, usando de demonstração lógica e
sem recorrer aos mitos, para a pergunta que mais incomodava os primeiros
filósofos (os chamados pré-socráticos ou filósofos físicos): qual era o
elemento primordial que dava origem a todas as coisas? Para Tales esse elemento
era a água, por ela estar presente nos alimentos necessários à vida, pelo fato
de as coisas vivas serem úmidas, enquanto as mortas ressecam e porque a terra
repousa sobre as águas. Daí sua conclusão de que ela deve ter sido o elemento
primordial.
Vemos, portanto, que
Tales, ao contrário do que sugere a primeira anedota, não tinha nada de
lunático, distraído e desligado dos problemas concretos. Muito pelo contrário,
pôs toda a sua inteligência, curiosidade e criatividade a serviço da busca de
soluções para eles, sobretudo aqueles mais importantes e urgentes em sua época.
Eis por que a tal anedota revela, de fato, um preconceito, isto é, um conceito
precipitado e desprovido de fundamentação.
Texto elaborado especialmente para este
Caderno
1 PlATÃO. Diálogos. Teeteto/Crátilo. Tradução Carlos Alberto
Nunes. Belém: Editora Universitária UFPA, 2001. p. 83 [174a].
2 ARISTÓTElES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 30.
3 De fato, atribuem-se a ele inúmeros feitos
importantes, como revela a professora e filósofa Marilena Chaui (2003, p. 55).
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